Depois de pelo menos 20 dias de chuvas incessantes em todo o estado, entremeadas com alguns momentos de sol, começam a aparecer os números das perdas com estimativas mais aproximadas. A Emater/RS ASCAR projeta a destruição de pelo menos 500 hectares de vinhedos, a maior parte deles cultivados na Serra Gaúcha, com a concentração dos prejuízos em Bento Gonçalves e Pinto Bandeira. “Mas este evento não representa perda direta nessa safra, que já havia sido finalizada”, alerta Luís Bohn, ajunto da gerência técnica Emater/RS ASCAR.
Se pensarmos nos cerca de 40 mil hectares do Rio Grande do Sul, estes 500 não parecem muito, mas na hora que transferimos este número para a região, o impacto é diferente. Dez municípios da Serra Gaúcha – Bento Gonçalves, Flores da Cunha, Nova Pádua, Caxias do Sul, Pinto Bandeira, Monte Belo do Sul, Farroupilha, Garibaldi, Cotiporã e Antonio Prado – respondem por aproximadamente 26,8 mil hectares cultivados com uvas no estado, ou seja, uma perda imediata de cerca de 2% da área de vinhedos. “Mas esse número deverá ser alterado à medida que o evento climático ainda em curso finalize e possamos efetivamente avaliar o todo”, diz Bohn, que alerta ainda: “ali na frente ainda teremos outras questões, como a sanidade das folhas, bastante atingidas pela água e umidade”, lamenta.
Thompson Didoné, da Emater de Bento Gonçalves, avalia que estes números ainda podem ser um pouco frágeis: “algumas pessoas acham que a área atingida será maior, outras menor”, pondera. “Eu diria que em Bento Gonçalves e nos municípios do entorno está concentrada a maior área de perdas”, completa.
Tristeza, prejuízo e incredulidade: pequenos produtores de Bento Gonçalves temem pelo futuro
Em Bento Gonçalves muitas pessoas deixaram suas propriedades pela insegurança do local, principalmente devido à geografia acidentada e caracterizada por encostas (foto acima, na propriedade da vinícola Speranza), ou pela dificuldade de sair em caso de urgência ainda maior. Outras ficaram e para isso precisaram utilizar geradores de energia para manter os alimentos conservados – e necessitaram ser abastecidos de mantimentos e combustível para o funcionamento do gerador. No caso de algumas pequenas vinícolas familiares, além dos estragos na estrutura e produção, a situação se agrava ainda mais pois o acesso bloqueado pela distribuição das estradas impede a venda dos vinhos, primordial para a subsistência de cada uma delas.
“Quanto mais a gente pensa, mais triste fica”
Diva e Auri Flâmia, da Piccola Cantina, localizada em Faria Lemos, no interior de Bento Gonçalves, deixaram sua casa no dia 3 de maio pelo risco que corriam: a propriedade fica em área mais isolada, as estradas estão bloqueadas e havia a tensão da possibilidade da ocorrência de deslizamentos. Desde então, não conseguem avaliar a dimensão do estrago causado pela enchente, Diva diz que ainda é cedo para entender o que foi impactado. No momento que saíram, a propriedade de 14 hectares havia perdido um pouco de suas parreiras, tinha danos em caixas que estavam no estoque e a água tinha invadido parte da área da agroindústria. Desde 1º de maio sem luz, subiram o morro para buscar abrigo em outra edificação, onde é coletada água da chuva para tratar as parreiras. Enquanto isso, a casa onde moram sofria com a água que descia e atingia sua estrutura. Depois de dois dias assim, foram resgatados pela equipe de socorro da prefeitura de Bento Gonçalves.
A história da vinícola começou com vinhos para consumo próprio, mas o pedido de amigos pelos produtos motivou Diva e Auri a regularizarem a situação para atender à demanda. A Piccola Cantina é a primeira agroindústria de vinho colonial legalizada no Brasil, mas como o registro foi por CPF e não CNPJ, só são permitidas as vendas de produtos no local ou em feiras, sem a possibilidade de comercializar de outra forma. Atualmente o plantio é de 17 variedades de mesa e 7 viníferas, como Chardonnay, Malbec, Merlot e Cabernet Sauvignon.
Sem poder voltar para casa, a venda de vinhos – assim como a vida de Diva – continua sem data para retornar à normalidade. “A gente fez tudo por amor. Desde receber os amigos em casa e vender um vinho produzido com as próprias mãos, ao cuidado garrafa por garrafa até a venda, é a gente quem faz tudo. É um momento bem difícil, só Deus sabe o que vai acontecer”, lamenta. ”Como não temos a possibilidade de vender para fora do estado, sofremos um pouco mais. Está cedo para pensar em tudo, quanto mais a gente pensa, mais triste fica”, desabafa Diva.
“Faz duas semanas que não vendo nada, zero, é só despesa”
“Estamos ilhados há 13 dias, desde 30 de abril. Não perdi muitos parreirais, só as estradas que dão acesso. Tenho empresa de vinhos e não tenho como entregar, faz duas semanas que não vendo nada, zero, é só despesa. Estamos a base de gerador, gastando R$100 de gasolina por dia para manter o freezer. Só sobramos eu, o pai e a mãe. Minha filha e minha esposa foram embora para casa de parentes, porque estava perigoso. Usamos a água da vertente, mas tomando banho frio, pois o gerador não pega chuveiro. Te digo, nunca vi coisa igual. Não tem previsão de liberar as estradas e a luz, menos ainda. Vai para o mês de junho em diante”. O relato é de Alceu Speranza, da vinícola Speranza, que fica em Linha Ferri, interior de Bento Gonçalves, empresa familiar com 7 hectares e produção pequena que chega no máximo a 22 mil litros por ano. Ainda na propriedade, Alceu relata que está em segurança, mas segue sem luz em um local que só dá par sair a pé ou “de motocross”, diz ele.
O maior estrago na vinícola foi o acesso (foto acima): sem as estradas só é possível chegar até um hectare de terra de toda a área que possui. Para atingir o restante só fazendo a volta pelo mato e por estradas antigas em um trajeto de mais 5 quilômetros. Focada em vinhos finos, a Speranza cultiva 15 variedades, entre elas Bonarda e Alicante Bouschet, rótulos que são comercializados em feiras como a Fenavinho – transferida recentemente para o mês de julho. Com a sede a cerca de 25 quilômetros distante da cidade e fora da rota turística, as visitas são frutos desses contatos em eventos. Com os reflexos da enchente, as vendas pararam, pois não há possibilidade nem de entregar os produtos encomendados.
“Estou com o estoque em perfeito estado, mas não tem como entregar”
Dos oito hectares da produção da Gallon Sucos, situada em Linha Alcântada, Bento Gonçalves, ao menos dois foram prejudicados pela catástrofe. No entanto, a principal perda de Edvaldo Gallon foi pessoal, com duas tias desparecidas desde o dia 1º de maio por conta das enchentes. Ele precisou abandonar a propriedade no dia 8 por uma trilha no meio do mato: já estava sem energia, água, comunicação, acessos por estradas interrompidos e sentindo-se inseguro.
A água invadiu o depósito, mas não atingiu os produtos (foto acima). A produção de sucos a partir das variedades Bordô, Concord e Magna abastece restaurantes e lojas especializadas, através de viagens e entregas a representantes comerciais em outros estados. Sem acesso devido às condições das estradas do município, não é possível vender e entregar as mercadorias.
“São 15 dias que a gente não consegue trabalhar, não consegue fazer nada. Desde o começo de maio que eu não vendo nada por conta dos acessos bloqueados”, lamenta. “Estou com o estoque em perfeito estado, mas não tem como entregar. Vamos tentar voltar para ver o que é possível fazer”.
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