Há cerca de seis meses a vida de milhares, milhões de pessoas, mudou. Há cerca de seis meses, nós, gaúchos, passamos por até então a maior tragédia climática da nossa história. Há cerca de seis meses estávamos levando nossa vidinha comum quando começou a chover, chover uma chuva que é habitual no final de abril e em maio, inverno aqui no Sul. As histórias e depoimentos que seguem abaixo foram colhidos nos últimos dias, rápidas conversas telefônicas, mas longas trocas de mensagens de texto e emocionados áudios de whatsapp. As pessoas com quem conversei foram algumas das mais atingidas nas enchentes de maio aqui no Rio Grande do Sul. Pessoas que sofreram abalos emocionais, físicos, financeiros. Que perderam amigos, áreas plantadas, estoques, prédios, negócios de uma vida inteira, sonhos.
Seis meses depois, ainda buscando encontrar os caminhos para solucionar os problemas que vieram com a água, os empresários da Otto mostram a nova cara do negócio, Arnaldo Argenta caminha em busca da recuperação plena da Valparaiso, a família Torri aguarda a finalização da obra da vinícola e Heleno Facchin não esconde a felicidade no rosto ao percorrer o vinhedo replantado.
Em comum a todos, a esperança e a resiliência, substantivo que de supetão foi incorporado ao dia a dia do gaúcho.
Com o perdão do abuso linguístico, resiliência, agora passa a ser sinônimo para uma expressão muito nossa: não tá morto quem peleia.
Lucia Porto
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A chuva se estendeu por 10 dias ininterruptamente em algumas cidades do Rio Grande do Sul em abril e maio de 2024. Nesse período choveu cerca de 700 mm – pense em 700 litros de água caindo ao mesmo tempo em um metro quadrado e imagine o estrago. Isso veio tudo junto, intenso, e com força. Em Porto Alegre, capital gaúcha, o Guaíba atingiu seu pico histórico de 5,37 metros no dia 5 de maio, data que o Governo Federal decretou estado de calamidade pública.
Outro número impressionante foi levantado pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade federal do Rio Grande do Sul: as chuvas de maio levaram mais de 14 trilhões de litros de água para o Guaíba – o que equivale a quase metade do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Foi um caos.
Dos 497 municípios do estado, 478 foram diretamente atingidos, 2,4 milhões de pessoas tiveram suas vidas impactadas e quase 450 mil tiveram de deixar suas casas. Até o dia 20 de agosto foram contabilizadas 183 mortes.
Passado tudo isso – passado em tempo, e não em vida e sentimento – como está o Rio Grande do Sul? Como estão os produtores de uva e de vinho, como está a região dos vinhos, o Vale do Vinhedos, os empresários da região? Durante os meses de maio e junho fizemos uma série de reportagens especiais mostrando a situação, apontando problemas pontuais, buscando ajuda, mostrando ações de solidariedade, ouvido especialistas, pedindo auxílio, trazendo reflexões, sugerindo caminhos.
Cerca de seis meses depois procuramos algumas das pessoas que foram personagens daqueles momentos para saber o que mudou neste período.
Thompson Didone, chefe do escritório da Emater de Bento Gonçalves, um dos primeiros técnicos que consultamos sobre a situação no momento em que acontecia, diz que a maior parte do prejuízo foi por deslizamento: “a perda total nos vinhedos da cidade ficou entre 170 e 180 hectares”, explica. “As famílias devagar estão voltando a sua normalidade, mas algumas estão morando em outras localidades e retornam às propriedades apenas para trabalhar”. Didone ressalta que um dos motivos para isso é o abastecimento de água que seis meses depois ainda não foi totalmente normalizado pois a tubulação foi toda destruída e em algumas regiões ainda há a necessidade de caminhões pipa. “Muitas das áreas de vinhedos que foram soterradas não serão mais utilizadas”, diz ele. “É muito difícil a recuperação”, complementa.
Ouvimos também quem sentiu na pele – e nos vinhedos, nas garrafas, na cantina, na loja e na casa onde morava – a força das águas de maio de 2024. Abaixo alguns trechos das conversas que tivemos com Heleno Facchin, Naiana Argenta, Rafael Torri e Gisele Valduga.
Heleno Facchin, produtor de uvas cooperado da Nova Aliança, com vinhedo em Pinto Bandeira, foi uma das primeiras pessoas a contar sua história aqui no Brasil de Vinhos. No dia 3 de maio, em um depoimento duro e emocionado, Heleno relatou que viu a força da água passar a cerca de 30 metros de sua casa (foto acima). Entre silêncios e longas divagações, sentenciou: “…Deus desviou com a mão e evitou a tragédia maior”.
Cerca de seis meses depois, Heleno reflete sobre o que passou e projeta o futuro.
“É um cenário de reconstrução e de recomeço com a ajuda de algumas pessoas. É nesse momento que a gente consegue entender o que é solidariedade, quem são as pessoas que se guiam por esse valor e que se doam. Por outro lado, houve muita burocracia para dificultar o acesso ao crédito e para reorganizar os endividamentos que existiam na área que foi atingida e que vai ficar agora três anos sem trazer rendimentos”, desabafa. “Não existiu ajuda e contribuição nenhuma dessa parte: se tinha um financiamento, um seguro em cima da área, isso não servia de nada. Nem seguro agrícola, nem seguro bancário. Eu tinha irrigação financiada nessa área que foi destruída, agora não tenho condições de fazer um investimento nesse nível. E aquela irrigação que estava financiada, que não existe mais, tem que continuar pagando sem usufruir. Essa é a verdade dura”.
Mas é preciso seguir: “a gente pensa pra frente, queremos e vamos continuar na atividade. A viticultura possui um movimento global e nós aqui na Serra Gaúcha sentimos e vivemos isso. É a viticultura heroica”.
Heleno sabe que é preciso investir na viticultura brasileira: “é uma atividade que dá certo, da qual o brasileiro precisa viver e se orgulhar. Somos brasileiros, vivemos aqui e esse é o fruto da nossa terra. Vamos continuar seguindo adiante, mesmo diante de percalços que vão demorar seis, sete anos pra nos levar de volta para onde estávamos, mas vamos seguir fortes, com resiliência e com o apoio de pessoas comuns, de cidadãos comuns como nós.”
Na foto acima Heleno vistoria a área de Pinto Bandeira que foi levada pelas chuvas de maio. O terreno, de pouco mais de um hectare, foi todo replantado a partir do apoio de empresas como a Vitácea, de Caldas (MG), e a Diamaju, de Anta Gorda (RS).
Uma das imagens mais impressionantes dos prejuízos causados pelas chuvas de maio às vinícolas gaúchas veio do centro do estado. Lá, na cidade de Silveira Martins, distante pouco menos de 30 quilômetros de Santa Maria, ficava a vinícola Val Feltrina. A foto acima, enviada pelo produtor Rafael Torri, proprietário da vinícola, mostra bem a força da natureza. A legenda para esta foto pode ser o que ele disse à época, em entrevista no início de junho de 2024: “não enxergo nada, só concreto e ferro”.
Em cerca de seis meses a fotografia mudou. Em frente à obra da nova sede da vinícola – não exatamente no mesmo ponto onde estava a construção que veio abaixo, mas a aproximadamente dois quilômetros dali, num local mais seguro – Rafael, Neida e Arnaldo aguardam para poder começar a trabalhar no prédio que está sendo finalizado. “A casa dos meus pais vai demorar um pouco mais, deve ser entregue até final de janeiro”, diz Rafael. “A vinícola nova será menor que a anterior, vamos produzir menos. Estamos arrumando os equipamentos, mas a parte elétrica e eletrônica de todos já foi revisada, falta ainda as soldas e também desamassar o que for possível”, complementa. O produtor diz que não vai ficar tudo pronto para a próxima safra, mas acredita que possa fazer um pouco de vinho: “eu fazia uma média de 20 mil litros de vinho e 30 mil litros de suco, agora penso em produzir uns 15 mil de vinho e 10 mil de suco”, avalia. Apesar de já ter produção em vista, Rafael não está muito otimista: ”é bastante desgastante gerenciar três obras, lidar com o parreiral e a burocracia dos financiamentos”, lamenta. “Dos três pedidos de crédito, apenas o da casa dos meus pais já foi aprovado.”
Em maio a conversa com Naiana Argenta, da vinícola Valparaiso, que fica em Barão, foi uma torrente de emoção e tristeza. Pudera. De uma hora para outra muito do que foi construído durante anos, décadas por seu pai, Arnaldo, foi levado pelas águas.(foto acima) Seis meses depois, mais ponderada, Naiana reflete sobre aqueles momentos e avalia o que vem pela frente.
“Na época que tudo aconteceu era muito difícil termos a real dimensão do prejuízo. Pudemos observar a destruição da cantina – a sujeira nos trouxe um grande abalo psicológico – e a situação das pontes que ainda precisam ser refeitas: agora está chegando a safra e não teremos como passar com o trator. Uma das baixadas do vinhedo onde tínhamos as variedades Isabel e Niagara ficou submersa cerca de 50 centímetros por alguns dias, ainda não temos condições de avaliar a perda ali, vamos entender em que o desenvolvimento delas ficou prejudicado na safra. As que deitaram totalmente nós perdemos, assim como perdemos boa parte da cobertura plástica, o que nos resultou um grande prejuízo financeiro”.
Ao mesmo tempo que lamenta o ocorrido, Naiana agradece pelo trabalho de prevenção feito há anos por Arnaldo, que desenvolve diversas práticas sustentáveis na propriedade, como a preparação de solo a partir de drenagem e vegetação, por exemplo. Mas também deixa um recado: “a questão das mudanças climáticas está cada vez mais presente. O que aconteceu foi horrível, mas esperamos que isso que sirva de lição para mudanças nas vidas das pessoas, não somente nos seus negócios, mas também uma mudança de estilo de vida”, diz. “Temos que pensar que a gente faz a diferença, o que fazemos no dia a dia faz diferença. Mas para efetivamente mudar todo mundo tem que pensar assim. Hoje ouvimos muito falar em Sustentabilidade, mas o que de fato é feito para realmente pensar no Meio Ambiente e nos impactos no planeta?”, reflete.
Na foto acima Arnaldo Argenta, 70 anos, caminha em direção à cantina da vinícola, um dos locais mais afetados na Valparaiso durante as cheias.
“Tudo o que aconteceu de ruim fez com que nos déssemos conta que éramos muito fortes como lojistas de vinhos brasileiros, o Rio Grande do Sul não tinha uma loja tão completa de vinhos nacionais”, explica Gisele Valduga, uma das sócias da Otto Espumantes e Vinhos. “Fechamos uma loja, mas isso acabou consolidando ainda mais a outra. Além disso estamos mais fortes como lojistas e como pessoas, elevamos ainda mais o patamar do serviço de excelência que oferecemos a nossos clientes”.
Gisele, que é uma das proprietárias da Adega Refinaria Terroirs do Mundo e da Otto Espumantes e Vinhos em sociedade com o marido, Fabiano e o primo dele, André Valduga (foto abaixo), ressalta ainda como os momentos de tensão, angústia e tristeza ocasionados pela enchente de maio trouxeram coisas boas: “fizemos muitos amigos nesse período, amigos que nos últimos tempos temos conhecido pessoalmente, e isso é muito emocionante”, completa.
A empresária fala ainda do momento da Otto, que passou por uma reestruturação de marca e traz estampadas nos rótulos as marcas da tragédia: “já estávamos pensando em mudar. O que aconteceu nos fez olhar o negócio de forma diferente e nos conduziu para outro caminho: foi uma mudança radical e ao mesmo tempo natural”, pondera. “Essas mudanças e o motivo pelo qual as fizemos foram fundamentais para atrair outro público para a Otto. É gratificante ver a receptividade que as pessoas têm pela nossa história”, finaliza.
É isso. Não tá morto quem peleia.
Fotos: Brasil de Vinhos, arquivo pessoal Heleno Facchin, Rafael Torri e Naiana Argenta. Otto foto Emerson Ribeiro.
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