Campos de Cima da Serra: uma joia vitivinícola brasileira a ser lapidada

Campos de Cima da Serra: uma joia vitivinícola brasileira a ser lapidada

Em uma sequência de três dias de publicações, o Brasil de Vinhos apresenta uma série de matérias mostrando um pouco da região vitivinícola dos Campos de Cima da Serra, um belo destino enoturistico que merece ser mais conhecido e visitado. Na primeira parte, o pioneirismo da Rasip e o grande investimento da Campestre, em Vacaria. Na sequência, Aracuri, Lemos de Almeida e Sopra, em Muitos Capões, e Sozo, em Monte Alegre dos Campos. 

Boa leitura. 

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Quando se fala em vinhos e Rio Grande do Sul, a primeira região que nos vem à mente é a Serra Gaúcha. Depois a Campanha. Depois da Campanha, bem, aí caímos numa encruzilhada. Trocadilhos a parte, é importante dizer, sempre, que essa lembrança não é por qualidade, mas sim por antiguidade e tradição: mais perto da capital os italianos começaram a povoar o Vale dos Vinhedos, nas fronteiras os ‘doble chapa’ popularam o Pampa galopando pelas coxilhas num portunhol arrevesado.  

Mas o Rio Grande do Sul não é só isso, claro, é muito mais. E numa esticada de roteiro até a região de Campos de Cima da Serra, quase em Santa Catarina, confirmamos uma certeza, puxando um viva à amplitude térmica: o nosso país produz excelentes exemplares de Pinot Noir, e uma boa parte deles nascem ali, engarrafados e prontos para comercialização, ou produzidos em outras regiões a partir de uvas cultivadas na área. Vêm dos Campos de Cima da Serra também belos varietais de Sauvignon Blanc. Isso sem falar nos premiados espumantes e no fora de série Pérgola, o vinho de mesa mais vendido no Brasil há onze anos consecutivos. 

A região de Campos de Cima da Serra, a de maior altitude no Rio Grande do Sul, com pontos entre 800 metros e 1200 metros acima do nível do mar, é formada por 14 municípios – o mesmo número de cidades que existem na Campanha Gaúcha – e tem uma área de aproximadamente 21 mil km2, pouco menos da metade da extensão da região fronteiriça, que tem 44 mil km2. O relevo até certo ponto se assemelha: são grandes extensões de terra, muitas vezes plana, mas o verde frequentemente mais claro e ralo que compõe o pasto da Campanha quase na fronteira com Uruguai e Argentina ganha mais cor, vida e um pouco de altura com as plantas de soja que emolduram os campos – também chamados Campos de Vacaria – pontuados aqui e ali com altas árvores de araucárias. 

Durante um final de semana esticado percorremos quatro cidades. Tendo Vacaria como base estivemos também em Muitos Capões, Monte Alegre dos Campos e na volta passamos por Campestre da Serra. Na região que nos anos 70 despontou com o cultivo da maçã há diversos produtores de uvas, pelo menos seis deles vinícolas organizadas na Associação de Vinhos de Campos de Cima  da Serra, um grupo que trabalha pelo crescimento da cultura da uva e do vinho na região – e já está buscando uma Denominação de Origem para os seus vinhos.  

No início, tudo era maçã 

E ainda é muito. Andar pelas estradas da região é como circular por um pomar gigante – e no verão perfumado e carregadinho de lindas maçãs. Mas por ali há também soja, alho, cenoura, pequenos frutos, como mirtilo, amora e framboesas, entre outras tantas culturas. E se a maçã é o destaque, o sinônimo dela é Raul Randon. O visionário empresário que na década de 70 implantou os pomares de macieiras na região, transformando a economia local, cerca de 30 anos depois fez o plantio do primeiro vinhedo de Cabernet Sauvignon: o ano de 2003 marcou o envase da primeira safra da Rasip – empresa onde trabalharam também José Sozo e Henrique Aliprandini, guarde estes nomes.  

Pois foi na fazenda São Paulino, em Vacaria, que seu Raul, como é carinhosamente chamado até hoje, em 2025, sete anos após sua morte, começou o plantio dos atuais 80 hectares do vinhedo, uma parte deles na área entre as macieiras, outra parte do município vizinho de Muitos Capões. “No início seu Raul contou com a consultoria da Miolo”, lembra Alecir Webber, “especificamente com Darcy Miolo e o agrônomo Ciro Pavan”, conta o gerente de produção de frutas da empresa. “Michel Rolland (enólogo francês que prestou consultoria para a vinícola Miolo durante 10 anos) veio duas vezes à região”, recorda o agrônomo Celso Zancan, diretor de fruticultura da Rasip. Até hoje os vinhos que levam a marca RAR são vinificados e finalizados na cantina da Miolo, no Vale dos Vinhedos.  

Mas o consórcio da uva com a maçã traz reais benefícios, além da beleza dos campos? Webber é rápido na resposta: “o aproveitamento da mão de obra, por exemplo, é fundamental para a rapidez no trabalho no vinhedo. Fazemos o controle do momento certo de colheita e deslocamos os funcionários conforme a necessidade”, explica, “isso simplifica muito o processo”. 

Um dos pontos que mais chama a atenção na longa extensão do vinhedo da São Paulino é a cobertura de solo, trabalho de mais de seis anos da equipe liderada por Mateus Dalsolio, coordenador de produção da Rasip: “nosso objetivo era que as plantas nascessem e cobrissem o solo para evitar a erosão;  menor incidência de sol, para que a vegetação conseguisse seus nutrientes; desta forma essas plantas que se desenvolveram acabaram ciclando e com isso continuando a nutrição”, explana, “e ao morrerem seguem servindo para as plantas da Chardonnay, para a produção da uva, que ao final qualifica o vinho”, resume. 

Pois Chardonnay, junto com Cabernet Sauvignon, Merlot, Pinot Noir, Sauvignon Blanc, Gewürztraminer, Viognier e Savagnin, são as uvas cultivadas pela Rasip, que resultam em varietais, cortes ou espumantes. O vinhedo conta ainda com parcelas de Malbec e Syrah, utilizadas em testes e para venda a terceiros. Além disso em 2022 foram implantadas áreas com Cabernet Franc, Sangiovese, Montepulciano e Alvarinho. 

Na empresa há 38 anos, Webber conta algumas peculiaridades do local, como a geada que exige o uso de sistema de aspersão: “aqui é uma região de altitude, com bastante frio e amplitude térmica, as geadas são frequentes”. Se por um lado esse fenômeno climático pode não ser tão bom, por outro as noites frias proporcionam maturação lenta das uvas, trazendo regularidade, equilíbrio e longevidade aos vinhos.  

“As noites frias resultam em acidez, que é um dos fatores de sucesso da Pinot”, avalia Zancan, “e na taça o Pinot Noir de Campos de Cima da Serra deixa transparecer claramente o Terroir da região: acidez bem presente que mantém a estabilidade na garrafa, ameixa bem pronunciada, um aroma tostado e permanência de final de boca”, esclarece o agrônomo. 

Acelerando para crescer

No outro lado da cidade, pela BR-116 em direção a Lages (SC), está localizada a vinícola Campestre, uma edificação imponente inspirada na região italiana da Toscana. Na chegada já impressiona a grande movimentação de uma obra sendo executada em velocidade – ali está sendo construído um hotel que deverá ter 120 apartamentos, com previsão de entrega para 2027. “Vem para complementar o projeto que já nasceu grande”, explica André Donatti (foto abaixo), responsável técnico e gerente-geral da vinícola Campestre. Acompanhar Donatti, eleito enólogo do ano pela Associação Brasileira de Enologia em 2024, caminhando pela propriedade, é praticamente treinar para uma maratona – o sorridente enólogo caminha quase tão rápido quanto fala.  

Dos 84 hectares da Campestre, 35 estão plantados e 20 deles estão produzindo 12 variedades: Sauvignon Blanc, Chardonnay, Pinot Grigio, Gewürtzraminer, Pinot Noir, Merlot, Tannat, Cabernet Franc, Syrah, Sangiovese, Rebo e Montepulciano. “No total a Campestre tem uma linha de 65 rótulos, desde o Pérgola até o Troppo Maturo, um blend de uvas desidratadas de Merlot e Tannat”, explica Donatti, que na Campestre, em Vacaria, coordena uma equipe de nove enólogos e três agrônomos.  

O super campeão de vendas 

O Pérgola, vinho mais vendido no Brasil há onze anos consecutivos, com cerca de 40 milhões de garrafas comercializadas em 2024, segundo pesquisa de líderes de venda realizada pela consultoria Nielsen, é um caso à parte. No mercado desde 1968, o corte de uvas americanas Isabel e Bordô, tem planta própria na cidade de Campestre da Serra, a cerca de 40 quilômetros de Vacaria – são praticamente dois negócios diferentes. O pequeno município de pouco mais de 3 mil habitantes parece gravitar em torno da vinícola: são aproximadamente 800 famílias de diversas cidades da região que fornecem uvas. “No auge da safra”, diz Donatti, “cerca de 200 caminhões a cada manhã praticamente fecham a rua atrás da indústria descarregando uvas”, explica. Toda a produção do Pérgola é realizada em Campestre do Sul, depois de vinificado, o vinho segue em caminhões até Vacaria, onde é engarrafado, rotulado, estocado e então enviado ao mercado.  

Incentivo ao Turismo e (mais) objetivos internacionais 

“A Campestre é uma continuidade natural do Pérgola, um trabalho iniciado pela família Zanotto no final dos anos 60, que ganhou um novo fôlego com a chegada da Campestre a Vacaria em 2014”, continua o enólogo. 

O local escolhido era a sede do antigo Frigorífico Vacariense – o Friva – abandonada desde o final dos anos 90. Com um investimento inicial de cerca de R$ 30 milhões para remodelar o local, que tem uma área turística de cerca de 23 mil m2, a vinícola caminha para ser um divisor de águas no turismo local. “Estamos bem próximos de Lages (SC)”, diz Donatti, “tem muita gente que vem passar o dia, conhecer a vinícola, comer alguma coisa e fazer um happy hour”, explica. 

O início do trabalho foi com a planta industrial. Boa parte foi reformada, mas muito foi feito do zero. “O frigorífico estava todo equipado com câmaras frias”, lembra o enólogo, “mas não aproveitamos nenhuma, todas foram compradas novas”.  O que restou deste período ficou pra história: “criamos até um pequeno museu do frigorífico, mas acabamos desativando por desinteresse dos turistas na visitação”, lamenta. 

O primeiro plantio de uvas da Campestre, feito no solo que é mais argiloso do que pedregoso, foi da variedade Merlot, em 2015, um vinhedo simbólico que fica bem na entrada da propriedade, e é um dos mais fotografados. 

A indústria hoje é tão grandiosa quanto os 23 mil m2 que podem ser percorridos pelos turistas em um transporte específico para isso: há cerca de 170 pessoas trabalhando no local, que tem capacidade de produção de aproximadamente 400 mil litros e hoje produz 180 mil ao ano. “Até 2030 imagino que estaremos operando em nossa capacidade máxima”, estima Donatti.  

O enólogo explica que a Campestre é um projeto pessoal do empresário João Zanotto, “um visionário”, declara. E segue dizendo que tem muita liberdade para trabalhar: sou muito grato a ele que me fez sonhar e me deixa sonhar até hoje” 

A cave de barricas impressiona: são mais de 80 delas, em uma grande área que fica quase na saída do roteiro da visita tradicional feita na vinícola, passeio que termina com um mini espetáculo de som e luz que conta a história da origem dos imigrantes italianos em uma linha do tempo criada a partir de imagens talhadas em pedras. 

Mas é impossível descer a uma cave de barrica com um enólogo com uma pipeta na mão e sair com a taça vazia. ‘Armado’ com a lanterna do celular, Donatti decifra os códigos de cada barrica e apresenta produtos em diferentes estágios de guarda: começamos com um Pinot Reserva 2023 que envelhece em barricas de segundo uso de Chardonnay e na sequência um Tannat 2022 que poderá vir a fazer parte do corte do Troppo Maturo.

De repente aparece mais uma pessoa na luz baixa da cave: João Zanotto para por alguns minutos entre um compromisso e outro e sai falando: “vinho tem qualidade ou não, é simples assim”, sentencia, “e não importa se o vinho é fino ou de mesa: o vinho é bom ou é ruim”, afirma. E logo emenda que, quanto menos dinheiro tem o consumidor, menos ele se permite errar: “o consumidor do vinho de mesa é fiel, compra o mesmo vinho sempre, temos de estar sempre atentos ao padrão de qualidade”, reforça. O empresário está falando sobre o consumidor do Pérgola, seja no Brasil ou no mundo: “exportamos cerca de 500 mil litros por ano para diversos países, estamos na Guiana Francesa e nos Estados Unidos em pelo menos 10 estados”, comemora. Zanotto é enfático ao defender o vinho de mesa: “na China, por exemplo, tem fila para degustar vinho de mesa, a Nigéria é outro mercado gigante”, avalia.  

Antes do empresário sair tão silenciosamente como entrou, fiz uma última pergunta: qual teu próximo objetivo, Zanotto? “Sabe qual o tamanho do mercado da Índia?”, me respondeu ele, com outra, já antecipando uma notícia que deverá vir em breve, “lá há pelo menos 200 milhões de bebedores de vinho”.  

América do Sul, América do Norte, África, Índia e mais um continente a sua escolha: impressionante como algumas táticas de negócio parecem brincadeira de criança. 

 

Esta reportagem continua. 

 Na sequência, Aracuri, Lemos de Almeida e Sopra, em Muitos Capões, e Sozo, em Monte Alegre dos Campos.  

 A jornalista Lucia Porto viajou a convite da Associação das Vinícolas de Campos de Cima da Serra.  

Fotos: Brasil de Vinhos e divulgação | vinícola Campestre – foto de André Donatti com uma garrafa de Pérgola.

Mapa: reprodução internet, turismo Campos de Cima da Serra

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