É difícil reunir tanta gente, mesmo que virtualmente. Durante cerca de um mês levantamos diversos nomes de profissionais brasileiros da Enologia que trabalham pelo mundo. Para identificar estes profissionais falamos com enólogos e professores no Brasil, com produtores, com sommeliers, com lojistas, recebemos dicas de seguidores, pesquisamos nas redes sociais.
A ideia veio para podermos homenagear os enólogos no dia, 22 de outubro, data que marca a fundação da Associação Brasileira de Enologia, entidade criada em 1976 e teve como primeiro presidente o enólogo Firmino Splendor – o famoso ‘Beija flor dos vinhedos’– um dos fundadores da ABE.
O critério para estar nesta matéria? Ser brasileiro e estar atuando formalmente como enólogo fora do Brasil.
Foi uma tarefa interessante. Dezesseis homens e mulheres de diferentes partes do Brasil, que hoje atuam como enólogos, seja na produção de vinhos ou na academia, em 9 países bem distintos (agrupados por ordem alfabética pra facilitar a vida desta que vos escreve): Argentina, Austrália, Áustria, Chile, Espanha, França, Itália, Peru e Portugal.
Cada um respondeu no seu tempo, no seu ritmo e no seu fuso horário, depois foi uma questão de organizar um quebra-cabeça de textos e áudios enviados pelo WhatsApp. Todos receberam as mesmas perguntas, mas algumas interpretações das questões foram diferentes, foi bem interessante perceber isso.
Alguns são mais sucintos nas suas repostas, outros se estendem mais, expõem mais detalhes: a forma de contar difere, mas nas palavras de Cesar, Fabio, Filipe, Henrique, Juan, Kerri, Lariza, Marcus, Marta, Mayara, Monica, Pedro, Pietra, Rafaela, Ranier e Rosa podemos perceber algumas coisas em comum, um elo que liga quase todos eles: em sua maioria, todos são muito gratos pelo que viveram e estão vivendo – e fazem questão de agradecer publicamente a quem os ajudou em determinados momentos de suas carreiras.
Nos depoimentos os profissionais agradecem nominalmente a enólogos, professores, mestres que os orientaram, guiaram e incentivaram nesse ato de coragem que é deixar o país rumo ao desconhecido em busca de um sonho. Algumas respostas, aliás, foram bem emocionantes.
O texto que segue é um pouco longo – um resumo das respostas de cada um dos 16 entrevistados – mas merece ser lido com um bom vinho ao lado, de preferência em etapas, dando um tempo para respirar, o vinho e o leitor.
Para finalizar, claro, já digo que faltaram profissionais, muitos, dezenas, centenas talvez, mas não será por falta de oportunidade. Aceitamos dicas de nomes por email, sempre temos espaço para contar boas histórias.
Boa leitura.
“A Enologia é muito mais rica em coisas que o dinheiro não compra”
Cesar Azevedo, Argentina
Gaúcho de Triunfo, Cesar foi criado entre as cidades de Casca e Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, região onde a produção de uva e vinho fazem parte da cultura local. Quando optou pela Enologia buscou o curso do Instituto Federal de Bento Gonçalves, um dos mais reconhecidos do Brasil; depois estudou na faculdade de Enologia e Indústria de Alimentos Don Bosco, em Mendoza, na Argentina.
Na sua trajetória também há diversos cursos e especializações em diferentes regiões da Europa, mas apesar disso Azevedo tem uma certeza: “ainda não sei nada, sou como um ‘baby’, nesse mundão do vinho’, brinca, “um eterno aprendiz”, completa.
A Maison Forestier, onde atuou dois anos como enólogo, foi o início de sua vida profissional. “Sempre estudei e convivi na área de Enologia e Viticultura trabalhando e estagiando em diversos locais, entre eles na De Lantier (Martini Rossi) – com o Adolfo Lona, principalmente”.
Azevedo é um profissional com bastante experiência: “trabalhei em companhias proprietárias de várias vinícolas na América Latina e na Europa, além de Estados Unidos e Oceania”, relata, “mas minha base sempre foi Mendoza, como diretor Técnico e Comercial Internacional da Wine Division Allied Domecq, Seagram, Diageo e Pernod Ricard”, resume
Há cerca de um ano Azevedo trabalha no projeto da Bodega Renacer, em Mendoza, vinícola que foi adquirida pelo Grupo Miolo no final de 2024. A volta ao Brasil ainda não é um plano, mas as viagens ao país são constantes.
Enologia na Argentina
Para o enólogo, a diferença entre a Enologia praticada na Argentina e no Brasil está nos desafios: “é obter a máxima expressão dos terroirs com a maior qualidade possível e mínima intervenção”, explica, “em Mendoza tudo é mais previsível devido ao clima andino ser continental, seco, árido e com as estações do ano bem definidas”. No Brasil é diferente, explica: “temos inúmeros terroirs e cada um com seus problemas de clima principalmente, o que torna a Viticultura e a Enologia mais desafiante e recompensadora quanto aos resultados dos vinhos obtidos, que muitas vezes são novos descobrimentos bastante satisfatórios com as suas propostas de qualidade incríveis”, exclama.
Ser estrangeiro
A proximidade geográfica com a Argentina e a similaridade da língua ajudam, mas um estrangeiro sempre tem mais obstáculos em um país que não o seu: “temos que nos destacar para sermos mais respeitados e provarmos a que viemos”, diz. Some-se a isso, diz ele, o fato de que o Brasil é um país onde as culturas vitivinícolas e enogastronômicas estão em constante descobrimento, crescimento e consolidação, “o mundo a cada dia conhece e respeita mais os profissionais brasileiros pela alta qualidade de seus vinhos e espumantes”.
O que é Enologia, Cesar?
“É uma mescla de arte, ciência, alquimia, saúde e bom gosto. Não há como ficar entediado e não ter desafios diários na Viticultura e Enologia: é muito desafiador quando se tem a oportunidade de permitir que a vida se expresse através da profissão nas suas mais diferentes facetas. Estude Enologia e desfrute do melhor que a vida tem para oferecer: crescimento fraterno e respeitoso em todos os aspectos, sejam eles técnicos, mundanos ou humanos. A enologia não é dinheiro, é amor, entrega e arte. E é muito mais rica em coisas que o dinheiro não compra.”
Se o que veio ao mundo não toma vinho, para que veio?
Para finalizar a participação do Cesar, um ditado que ele deixa, em espanhol – um adagio:
Al que mundo vino no toma vino a que vino?
“Cada lugar faz vinho de uma forma, não existe certo ou errado”
Pedro Rotava Valduga, Austrália
Nascido em Bento Gonçalves, capital brasileira do vinho, a escolha pela Enologia não foi algo muito surpreendente na vida de Pedro. Foi ao natural que realizou sua formação no Instituto Federal, na Serra Gaúcha, e em seguida já engatou um trabalho: seu primeiro emprego foi como auxiliar de pesquisa na Embrapa Uva e Vinho, onde ficou um ano especificamente estudando porta-enxertos para pêssegos, ao lado de Alexandre Hoffman.
Pedro mora em Melbourne, na Austrália, e segue estudando, agora no bacharelado em Viticultura e Enologia na Melbourne Polytechnic. “Decidi vir para a Austrália por ser um país referência em Enologia, além de ter foco em Sustentabilidade e Tecnologia”, diz Pedro, “queria também um local onde pudesse falar inglês e que tivesse oportunidades de emprego, além de ser próximo a cidade grande”, completa. Mas a ida, a princípio, não é definitiva: “penso em voltar para o Brasil e trazer novos olhares para o setor”, assegura.
Desde o início de 2025 trabalha como assistente de enólogo na The Story Wines, uma vinícola que tem foco em variedades
do Sul do Rhône, como Syrah, Grenache, Marsanne, Roussane e Viognier e produz aproximadamente 80 toneladas ao ano.
Enologia na Austrália
Sobre as diferenças entre a Enologia praticada no Brasil e na Austrália, Pedro é prático e direto: a Austrália é um país reconhecido pelo uso de screw cap, por exemplo, e a tampa rosca ainda não é muito bem vista no Brasil, mas aos poucos isso vem mudando. “Cada lugar faz vinho de uma forma, não existe certo ou errado”, diz.
O enólogo aponta também a produção de vinhos com menor intervenção e o foco maior em exportação: dados de 2024 apontam que mais de 50% do vinho produzido no país foi vendido fora da Austrália. Outra característica marcante é a especialização das regiões em determinadas castas e estilos: “Yarra Valley, por exemplo, foca em Pinot Noir e Chardonnay, e de Barossa Valley vêm os Shiraz encorpados”, aponta.
A responsabilidade é fundamental
Mas claro, tudo tem suas dificuldades, desde as burocráticas, como os obstáculos em conseguir o visto de trabalho, até as emocionais, como a distância das grandes cidades, dependendo da região escolhida. Some-se a isso, segundo Pedro, um setor em declínio, com poucas oportunidades, e o salário: “se você trabalha vendendo vinho em loja tende a ganhar mais dinheiro do que assistente de enólogo ou pessoa que está na cantina”, relata.
Para quem pensa em trilhar o mesmo caminho e desbravar o mundo da Enologia tendo a Austrália como meta, Pedro traz algumas sugestões bem diretas: “tenha contatos e faça contatos, se quiser buscar residência australiana trace um objetivo claro e escolha empresas boas, que possam ajudar no processo de cidadania”, orienta, “e seja correto e responsável, australianos não toleram pessoas desonestas e irresponsáveis”, alerta.
E deixa uma dica bem pessoal: “todo mundo sente medo e saudade, é normal”
O que é Enologia, Pedro?
Para mim é a união entre tradição e tecnologia.
“A arte dos vinhos é muito ampla e cativante”
Juan Luis Peñaloza Galardo, Áustria
A história de Juan começa estudando fora. Gaúcho e natural de Porto Alegre, fez formação em Enologia e Viticultura na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real, Portugal – e o último ano completou na Universidade de Bordeaux, na França. Depois disso, voltou para o Brasil, mais especificamente para Espírito Santo do Pinhal, onde ficou por quase cinco anos, entre as safras de 2011 a 2014, como enólogo chefe da vinícola Guaspari. “Lembro com muito orgulho das conquistas para a empresa e para o Brasil”, conta, “na época pela primeira vez os vinhos brasileiros ganharam medalhas na revista Decanter e no concurso de Syrah Du Monde, na França”.
Mas antes disso Juan trabalhou na Austrália, onde fez um pouco de tudo como um enólogo recém-formado: “foi mais como um estágio, não tinha experiência e logo acabei por aprender muitas coisas”. Depois foi para Luxemburgo até voltar para o mencionado projeto da Guaspari: “já com experiência fora do Brasil fui trabalhar em um projeto lindo, um sonho de descobrir e colocar no mapa nacional uma nova zona vitícola do país”.
Juan pensa em voltar e poder novamente desenvolver a profissão por aqui: “trabalhei no interior de São Paulo por quase 5 anos e tenho a certeza que o Brasil tem um potencial incrível, basta combinar o profissional e os investidores certos que a mágica acontece”
Produzindo vinhos orgânicos
Passado este período de Brasil voltou ao Velho Mundo, primeiro na França e depois na Áustria, onde está até hoje, morando na cidade de Langenlois: “foi uma oportunidade de trabalhar na Weingut Brundlmayer, uma das mais renomadas vinícolas da Áustria, produtora de vinhos orgânicos.”
Há três anos na empresa e com experiência também no Brasil, Juan percebe que o dia a dia de trabalho é muito parecido, o que ele credita ao fato de, nos dois países, existirem vinícolas com grandes investimentos. Por outo lado, aponta a tradição secular do Velho Mundo como grande fator de diferenciação.
Como se destacar no mercado
Quem veio de fora como ele, aponta a barreira da cultura e da língua como maiores obstáculos em outro país: “temos de estar sempre 100%”, sugere.
“Dou uma dica: corram atrás dos seus sonhos, vivam com muita alegria, dedicação e foco em tudo que fizerem, esta arte dos vinhos é muito ampla e muito cativante”, orienta, “e viajar abre muito a visão profissional e de mundo ajudando imensamente na carreira.”
“Sair da zona de conforto, buscando novos caminhos e desafios”
Ranier de Souza Velho, Chile
Ranier tinha 24 anos e trabalhava há quatro na vinícola Geisse, em Pinto Bandeira, quando sua vida começou a mudar: “em 2016 eu fui com um amigo fazer safra na Viña Geisse, no Chile. Ficamos apenas um mês, mas gostei do país, fui bem recebido e pude elaborar vinhos de locais consagrados, despertando meu interesse na viticultura e enologia de lá”, lembra, “quando terminei o estágio, voltei ao Brasil para trabalhar com turismo, mas como já estava formado, queria seguir atuando na área técnica e de elaboração de vinhos”, explica.
Decidindo rápido
A oportunidade veio com uma troca de ideias com um enólogo que é referência não apenas no Brasil, mas no mundo: “Em julho de 2017, conversando com Mario Geisse, ele me ofereceu a possibilidade de trabalhar na Viña Geisse, e em duas semanas tomei a decisão”, lembra, “no dia 1º de agosto daquele ano estava morando no Chile”.
Rainer conta isso anos depois e lembra que a decisão foi baseada no desafio e na possibilidade de crescimento em um país reconhecido pela produção de grandes vinhos. Mas afirma que também foi motivada por trabalhar em uma empresa que já conhecia muito bem, e que sabia que tinha potencial de crescimento, além de elaborar grandes vinhos em um projeto novo e localizado em uma importante região produtora mundial.
O início
Mas voltemos ao começo. Rainier fez seus estudos como Técnico em Vitivinicultura na EEB Manoel Cruz, em São Joaquim (RS), como Tecnólogo em Viticultura e Enologia, no IFRS, em Bento Gonçalves (RS) e foi diplomado em Viticultura y Enología, pela Universidad de Chile, em Santiago. Antes de entrar na Geisse – Brasil e depois Chile – teve uma primeira experiência na EPAGRI de São Joaquim (SC), onde atuava na área de microvinificação de uvas tintas e brancas da Serra Catarinense como estagiário.
“Durante o curso Técnico em Vitivinicultura fizemos algumas viagens técnicas à Bento Gonçalves, e aí nasceu meu interesse em seguir nessa carreira. Em 2013, fiz o vestibular e ingressei no IFRS, onde me formei como enólogo em 2016”, lembra.
Morando em Bento Gonçalves e tendo contato direto com produtores de vinho, viticultores e instituições de pesquisa, Ranier entendeu que realmente havia um potencial e que queria ter uma carreira como enólogo para poder elaborar vinhos de terroirs especiais.
“Foi um período no qual fiz estágios e trabalhei em diferentes vinícolas, como Geisse, Chandon, Luiz Argenta e Boscato, o que me possibilitou ter vivência nos diferentes setores das empresas, desde a parte técnica, até receptivo e área comercial”, relata.
Começou na Geisse no setor de turismo e fazendo as safras e simultaneamente era bolsista de iniciação científica na Embrapa Uva e Vinho, trabalhando em projetos de Produção Integrada de Uvas para Processamento, com pesquisas desenvolvidas com produtores de uva da Serra Gaúcha. Até que um dia teve aquela conversa com Mario Geisse e tudo mudou: há 8 anos mora no Chile, em Santa Cruz, Valle de Colchagua, na região central do país.
Espírito aventureiro
“Quando estávamos no curso técnico em São Joaquim, um grande amigo e um professor diziam que eu tinha ‘espírito aventureiro’, mas eu não aceitava e até ficava um pouco chateado com aqueles comentários”, recorda, “mas com o passar do tempo passei a acreditar que eles tinham razão, porque sempre gostei de desbravar e sair da zona de conforto, buscando novos caminhos e desafios.”
Sobre uma volta ao Brasil, Rainer não confirma, mas também não descarta: “atualmente não está nos meus planos, pois estou em uma etapa de consolidação e buscando novos desafios aqui no Chile. Mas minha família está toda no Brasil, e isso tem seu peso na balança da vida – no longo prazo o futuro dirá.”
Enologia chilena
Para Ranier os desafios no Brasil começam pelo clima: “as condições climáticas, como o excesso de índices pluviométricos por exemplo, são muito adversas”. Apesar disso, segundo ele, alguns produtos se destacam – e os espumantes são um grande exemplo: “o vinho brasileiro possui características distintas, destacando-se mais o frescor e a fruta, e com o surgimento de novas regiões produtoras, há uma diversidade muito interessante de produtos”, reflete.
Já no Chile, especificamente no Valle de Colchagua, as condições climáticas são mais favoráveis, pois desde a brotação até colheita não há chuvas. Essa condição de escassez hídrica, somada à proximidade com a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico, entrega uma boa amplitude térmica, e a falta de chuvas somada com índices de radiação elevados, possibilita a produção de uvas com excelente maturação e sanidade. “No Chile a produção de espumantes ainda tem muito para crescer, mas os vinhos tintos e brancos possuem uma qualidade muito alta e consagrada, e as vinícolas contam geralmente com matérias primas com bastante qualidade, concentrando esforços em extrair o máximo potencial das uvas no processo de elaboração e envelhecimento. Encontramos uma variedade muito grande de vinhos com altíssima qualidade de Norte a Sul, em diferentes regiões produtoras”, resume.
Dificuldades & possibilidades
As barreiras de um estrangeiro começam no idioma e, no caso dos enólogos passam pelo fato de o Brasil ainda não ser tão reconhecido por sua tradição vitivinícola: “demorei pelo menos dois anos para fazer uma rede de amigos enólogos, o que então me possibilitou uma certa visibilidade no setor”, recorda, “mas recém-chegado, sem muito domínio do espanhol e ainda com pouca experiência como enólogo, tive que vencer obstáculos dentro e fora da empresa”.
Por outro lado, Ranier aconselha aproveitar as possibilidades que surgirem: “a oportunidade de voltar sempre vai existir, já as oportunidades de sair são mais escassas”, filosofa, “a profissão de enólogo abre muitas portas fora do Brasil, tanto para fazer safras pontuais, quanto para trabalhos estáveis, e acredito que o profissional que queira ampliar os horizontes e não tem medo de aventura, deve fazê-lo. Conhecer outra cultura é enriquecedor para a profissão e para a vida”.
O que é Enologia, Ranier?
“Para mim é mais que uma profissão, é um estilo de vida. Elaborar vinhos é traduzir em uma garrafa as nossas histórias, a essência de um lugar e finalmente levar felicidade à mesa e à taça dos consumidores”.
“É muito raro encontrar na Espanha uma empresa ou pessoa que não tenha relação direta com o vinho”
Fábio Laner Lenk, Espanha
A decisão de trabalhar fora do Brasil foi algo planejado na vida do enólogo Fábio: “eu e minha esposa, Tarina (também realizando o Pós-Doutorado na Unirioja nas áreas de Enoturismo e Marketing em Enologia), já havíamos residido e participado de outros projetos no exterior, foi um processo natural buscar por uma nova experiência de trabalho e conhecimento em uma região tradicional que é referência em vinhos de qualidade”, conta.
A localização da Rioja também facilita o deslocamento para outras regiões vitivinícolas no continente europeu. Além, o contato com outra cultura e aprender um novo idioma também foram fatores determinantes.
Mas assim como sair foi pensado, voltar também está sendo: “é o meu país, minha raiz cultural e afetiva. Apesar de alguns problemas e da forte desigualdade confio muito no nosso potencial de desenvolvimento e o setor vitivinícola brasileiro vem se destacando e crescendo a cada dia”, diz, “e em termos de conhecimento e criatividade as enólogas e enólogos brasileiros estão em nível de excelência”.
A formação no Brasil
A graduação de Fábio em Viticultura e Enologia foi na mesma região onde em seguida começou a trabalhar, mas diferente de boa parte dos profissionais com quem conversamos, seus estudos se deram no Instituto Federal do Sertão Pernambucano (antigo CEFET Petrolina) na cidade de Petrolina, no Vale do São Francisco. Fábio fez parte da primeira turma do curso e logo engatou um trabalho na vinícola Rio Sol, em Lagoa Grande, onde ficou por cinco anos. “Trabalhei durante toda a graduação nas áreas de Viticultura, Enologia e Enoturismo, e depois desenvolvi minha pesquisa de Mestrado na Universidade Estadual da Bahia, em Juazeiro, utilizando os vinhedos experimentais da vinícola”.
Da prática para a teoria
Depois de um tempo na prática, o enólogo resolveu se voltar à Academia. Durante um período foi professor no IF Sertão Pernambucano e na sequência fez parte da equipe que implantou o Curso Superior de Tecnologia em Viticultura e Enologia no Instituto Federal de São Paulo – Campus São Roque: em 2013 sua equipe iniciou o primeiro curso de viticultura e Enologia do Sudeste. Três anos depois concluiu Doutorado na UNESP de Botucatu consolidando sua atuação nas áreas de Ensino, Pesquisa e Extensão.
Atualmente Fábio mora na cidade de Logroño, capital da Comunidade Autônoma de La Rioja e faz um estágio de Pós-Doutorado na Universidad de La Rioja e no Instituto de Ciencias de la Vid y del Vino, desenvolvendo pesquisas com foco no acompanhamento agronômico de variedades resistentes a doenças fúngicas. Simultaneamente estuda a gestão da Denominación de Origen Calificada D.O.C.a Rioja.
A onipresença da Enologia na Espanha
Para Fábio a força e a representatividade da Enologia como setor produtivo na economia espanhola são grande destaque no país: “é muito raro encontrar uma empresa ou pessoa que não tenha relação direta com o vinho”, testemunha, “também a área plantada de uvas e volume de produção dos vinhos é impressionante. O setor vitivinícola é rigorosamente regulamentado e fiscalizado, desde a produção por plantas até as horas trabalhadas e isto se reflete no campo da pesquisa científica com altos investimentos em qualificação dos pesquisadores, infraestrutura dos centros de pesquisa e equipamentos de última geração”, completa.
Dominar a língua, estar aberto para aprender e ter humildade
Compartilhamento de conhecimentos é uma das características da profissão que Fábio argumenta facilitar uma boa aclimatação no exterior: “A Enologia é uma profissão de conhecimento e aplicabilidade universal. Compartilhamos os mesmos saberes, porém com idiomas distintos”, diz, “o domínio da língua é a melhor ferramenta para uma boa adaptação e posição de trabalho.
Pedimos a Fábio um conselho para quem está pensando em fazer o que ele fez e o enólogo é taxativo: “Faça!!! Cada região possui suas particularidades em termos de clima, uvas e método de elaboração dos vinhos. A melhor forma de compreender estes aspectos é vivenciar uma safra na região”, pondera, e reforça: “é preciso estar aberto para as diferenças culturais, ter humildade para aprender e aproveitar as várias oportunidades que irão surgir.
O que é Enologia, Fábio?
“Enologia para mim é uma realização de vida”
“Tudo o que estou aprendendo aqui um dia voltará ao Brasil comigo, de alguma forma”
Marta Höhne, Espanha
Interessante ver como as histórias se entrelaçam. A Marta foi aluna do Fábio, sobre quem contamos logo acima, quando fez sua graduação em Viticultura e Enologia no Instituto Federal de São Paulo, Campus São Roque. Ela conta, entusiasmada, que logo no segundo ano de curso já produziu seu primeiro vinho: “éramos cinco colegas cheios de vontade e nos arriscamos. Compramos as uvas de diferentes regiões – Tempranillo de Petrolina (PE), Syrah de colheita de inverno de Itaí/Avaré (SP) e a Chardonnay da Serra Gaúcha (RS). Vinificamos em vinícolas parceiras, em Jundiaí e São Roque”, lembra, “foi um excelente início. Desde então sigo produzindo todos os anos, em safra de verão ou de inverno”.
No final de 2024 Marta teve a possibilidade de passsar um semestre estudando Enologia na Universidade de La Rioja em Logroño, no programa de Mobilidade Estudantil, por um convênio firmado entre o Instituto Federal e a Universidade. “Cheguei em janeiro, em pleno inverno”, conta, “foi um semestre de muito aprendizado, estudos e desafios. Me apaixonei pela cidade, pelo povo espanhol e sua cultura.Tive oportunidade de frequentar vários cursos e palestras sobre vinho e como ele faz parte da vida de da história da região e das pessoas que aqui vivem, também conheci muitas vinícolas, a maioria delas centenárias, e aprendi muito”, sinteriza. Marta começa em breve um novo ciclo académico, desta vez no mestrado em Tecnologia, Gestão e Inovação vitivinícola na mesma Universidade.
A Enologia espanhola
“A Enologia espanhola é marcada por tradição e continuidade, o vinho faz parte da identidade do povo e reflete séculos de aperfeiçoamento. No Brasil a Enologia é jovem e está em constante evolução: La Rioja é e sempre será uma referência para o Brasil.”
Olhar curioso e atento
Marta confessa que estrangeira em La Rioja tem sido desafiador: “conquistar o reconhecimento em um meio tão tradicional e competitivo não é fácil”, reflete Marta, “aprendo todos os dias, ainda estou me adaptando à forma de trabalhar, à linguagem técnica e até aos costumes locais”, sentencia. “Tento manter um olhar curioso e atento, sinto que posso contribuir com essa mistura de experiências e culturas”, complementa.
O vinho ensina paciência, humildade e respeito pelo tempo
Sem planos de voltar ao Brasil, Marta quer aproveitar ao máximo o que tem pela frente: as aulas, as vindimas, os ensaios, as ‘catas’ espetaculares que diz ter a oportunidade de vivenciar. “Não penso em voltar ou ficar, mas sim continuar crescendo onde quer que o vinho me leve. E sei que tudo o que estou aprendendo aqui um dia voltará ao Brasil comigo, de alguma forma”.
Apesar de estar há pouco tempo na Espanha, Marta dá bons conselhos para quem tentar uma iniciativa como essa: “a vida é feita de ciclos, e nunca é tarde para seguir um sonho. Estudar e trabalhar fora, mudar de país e enfrentar uma nova língua, tudo isso exige coragem, mas traz recompensas imensas”. E complementa: “o vinho ensina paciência, humildade e respeito pelo tempo. E é exatamente isso que a jornada fora de casa nos faz viver.”
“Bons profissionais podem transformar a condição de estrangeiro em vantagem”
Marcus Chaiben, França
A Enologia fez Marcus abandonar os estudos. Calma, com 18 ele ainda estudava outra coisa, quando começou um estágio na Cooperativa Vinícola Aurora, repondo prateleiras de vinhos e atendendo clientes. Foi se interessando pelo assunto e deixou os estudos em Sistemas de Informação de lado para seguir o vestibular em Enologia, que cursou no Instituto Federal, em Bento Gonçalves (RS). Mas também andou pelo mundo: fez três semestres Colorado State University, em Fort Collins, nos Estados Unidos, e agora está em busca de uma certificação francesa, o Diplôme National d’Œnologie, pela Universidade de Bordeaux, na França.
Perfil multifacetado
Marcus ficou dois anos na Aurora, depois focou nos laboratórios de iniciação científica da faculdade, mas especificamente no Laboratório de Fitossanidade, desenvolvendo projetos de identificação de doenças fúngicas e micropropagação da videira. Nesse período também fez uma safra na Chandon, onde participou da débourbage (desborragem) de mostos brancos destinados a espumantes, antes de partir para os Estados Unidos.
Passou também pelo receptivo da vinícola Miolo, no Vale dos Vinhedos, antes de ser transferido para áreas diferentes: primeiro a produção na Quinta do Seival, na Campanha Gaúcha, depois para o varejo, fazendo parte da equipe que desenvolvia o mercado de vinhos no Norte e Nordeste do país: “essa experiência foi fundamental para entender o perfil de consumidores e clientes brasileiros — algo que hoje me ajuda muito quando elaboro vinhos”, conta.
Vinificar pelo mundo
Marcus sempre quis viajar e conhecer novas culturas, desta forma passou a trabalhar como Traveling Winemaker – traveling ou flying winemaker, é o enólogo que é trabalha como consultor para vinícolas em diferentes regiões e países, sem se fixar em uma única empresa. Passou a rodar o mundo: esteve noNapa Valley (EUA), Vale do Colchagua (Chile), Vale dos Vinhedos e Campanha Gaúcha (Brasil), Marlborough (Nova Zelândia), Açores e Alentejo (Portugal), Andaluzia (Espanha) e Rhône Norte (França).
A escolha do Languedoc
Há quase três anos Marcus é o enólogo responsável pelos Domaines Montariol-Degroote, em Carcassonne, no Languedoc, Sul da França. “Dentro dos desafios de ser um enólogo estrangeiro, encontrei no Languedoc uma região aberta a novas técnicas, novas uvas e novos profissionais. Apesar da fama de produzir grandes volumes sob sol escaldante, a região é calorosamente acolhedora com bons profissionais, sejam franceses ou não”, pondera, “não fui eu que escolhi o Languedoc, foi o Languedoc que me escolheu”, completa.
Questionado sobre a possibilidade de voltar ao Brasil, o enólogo não fecha nenhuma porta e responde poeticamente: “agradeço a Baco por ter nascido brasileiro e por ter vivido em primeira mão nossa Cultura e nossa Língua, mas hoje estou focado em aprender outras”, declama, “e gosto de dizer que uma parte do vinho francês é feita por um brasileiro”.
A Enologia na França
“A maior diferença que vejo em relação ao Brasil é o papel do vinho na sociedade. Aqui o vinho é algo intrínseco à cultura: não depende apenas de tecnologia ou normas. Embora essas ferramentas existam, são coadjuvantes. O vinho aqui é feito por pessoas, carrega sua personalidade e a da terra”, relata, “encontramos equipamentos de última geração dentro de caves construídas há séculos — maquinário sempre pilotado por pessoas ligadas à terra, seja de nascença ou de coração”.
A taça sempre meio cheia
Marcus vê mais prós do que contras no fato de ser estrangeiro: “o fato de ser enólogo brasileiro desperta interesse e curiosidade. A língua pode ser um desafio, mas para nós, falantes de línguas latinas, o francês não é tão difícil assim”, arrisca, “há burocracia, claro, mas isso existe em qualquer lugar. Por isso, acredito que bons profissionais podem transformar a condição de estrangeiro em vantagem”, aponta.
E se pudesse dar um conselho a quem pensa em sair do Brasil, Marcus diria algo que ouviu há muitos anos: ‘Não tenha medo, confie no seu talento e lembre-se de que você sempre vai trazer algo que não existe naquele lugar. Isso faz diferença e pode ser usado a seu favor’.
O que é Enologia, Marcus?
“Enologia, para mim, é minha forma de contribuir para a história dos vinhos do mundo, de Norte a Sul.”
“A decisão foi ficar aqui por essas uvas, isso é o mais bonito de tudo”
Pietra Possamai, Peru
Pietra é econômica nas palavras, mas já fez muita coisa nessa vida. Começou focada: primeiro o Técnico no Ensino Médio depois o Superior, ambos em Viticultura e Enologia no Instituto Federal de Bento Gonçalves.
Experiência no Brasil
Hoje a enóloga mora no Peru, e vive entre Lima e Valle de Pisco, lugar em que está a Bodega Murga, onde trabalha há seis anos. Quando relembra o primeiro emprego, na Almaúnica, no Vale dos Vinhedos, já traz um agradecimento na frase: “sou muito grata pela oportunidade de ter aprendido tanto com Márcio Brandelli e Giovani Ferrari, dois mestres. Foram conceitos de produção, qualidade, confiança e comprometimento com a filosofia e o vinho.”, recorda, “aprendi muito do que aplico hoje em dia nos vinhos que elaboro”.
Antes de decidir mudar, Pietra passou por um estágio na Embrapa e trabalhou na Fecovinho com Hélio Marchioro: “esse período me proporcionou acompanhar Hélio e família no início da Casa Ágora, outra vinícola que tenho muito orgulho de ter visto crescer e acompanho com muito entusiasmo”, conta, e logo emenda que também produziu vinhos com uma dupla de enólogos que tem se destacado bastante: Ricardo Ambrosi e Lucas Foppa, da Foppa e Ambrosi.
A Enologia no Peru
A enóloga percebe muitas diferenças entre a Enologia praticada nos dois países: “são tantas! Momentos bastante diferentes do mercado, no Peru a estrutura produtiva atual é bastante recente, fator que torna mais complicado conseguir fornecedores de maquinário, dando um exemplo simples”, explica, “e isso sem falar do clima diferente e do solo daqui que é um fator único e muito especial”. Talvez por isso Pietra tenha na ponta da língua o motivo que a fez optar por ir – ou como ela mesma diz, ficar: “a decisão em si não se tratava de vir, a decisão foi ficar aqui por essas uvas, isso é o mais bonito de tudo”, confessa.
Senso de humor sempre é bom
E ser estrangeira atrapalha? “Depende do ponto de vista”, diz, “as dificuldades são várias, mas felizmente vivemos em um mundo globalizado no qual sabendo o idioma e tendo senso de humor, a pessoa se vira”, resume.
Levar umas paçoquinhas na mala ajuda
Sobre voltar, Pietra desconversa e declara todo o seu amor: “não tenho resposta para essa pergunta, mas quero dizer que amo o Brasil, nosso país é gigante e lindo”, diz, “mas estou concentrada no caminho que venho construindo aqui no Peru, sou bastante agradecida por isso – além de que a gastronomia peruana é realmente uma maravilha!”, aclama.
Ah, faltou o conselho: “Muita paciência e bom-humor. E levar umas paçoquinhas na mala, isso sempre ajuda”.
“Melhorar processos e crescer a empresa da família”
Kerri Formolo, Itália
Nascido em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, antes de começar na Enologia, Kerri jogou futebol, trabalhou na empresa e também na vinícola da família, a Cantina Rocca. Até o dia em que resolveu sair do país, com objetivos bem claros: “agregar valor e experiência para poder expandir na capacidade de produção, melhorar processos e crescer a empresa da família”.
Kerri mora em Udine desde 2018 – e foi lá também que fez uma parte de sua dupla formação como enólogo, pois estudou na Universidade de Udine além do Instituto Federal de Bento Gonçalves. “Minha primeira experiência como enólogo aqui na Itália durou dois anos”, conta, “foi na Cantina Mont’Albano & Sabernius, que produzia vinhos BIO”. Em 2023 o enólogo mudou de emprego: “trabalho na Bidoli, uma cantina que vinifica em maior proporção vinhos brancos com mais mercado na Inglaterra e Estados Unidos, produzindo em média 1,8 milhão de garrafas por ano.
A diferença entre a Enologia do Brasil e a da Itália?
“Principalmente em tecnologia”, diz ele, que aponta também outro grande extremo entre as nações: “a Itália por si só é um país onde ainda se encontra bastante racismo e preconceito”, lamenta, “e entrar em um mercado onde produzem vinho há mais de 500 anos e se tornar responsável de produção dentro de uma cantina, mesmo sendo estrangeiro, é bastante satisfatório”, confessa. Mas o enólogo aconselha algo a quem quer fazer o mesmo: “antes de pensar em sair do seu país de origem para estudar ou até mesmo trabalhar, prepare-se. E prepare-se em todos os sentidos e aspectos possíveis e inimagináveis”, alerta, “procure conhecer não só a língua (essencialmente importante) mas também a Cultura, a História e estar preparado para todas as dificuldades que estar longe de casa e ‘dos teus’ significa. Estar longe quer dizer passar por momentos difíceis, datas felizes se tornam tristes, a saudade e a solidão se transformam parceiras diárias e por fim parecem fazer parte do seu dia a dia. Pra resumir, um abraço de um amigo ou familiar, pode valer muito mais do que a moeda do país”, desabafa.
O que é Enologia, Kerri?
“Enologia pra mim é um romance engarrafado — cada taça revela segredos, desperta sorrisos e faz o coração bater mais devagar. Enologia é descobrir que cada vinho tem uma história pra contar — e que, no fundo, todas falam de amor, paciência e alegria de viver, é o encontro entre a terra e o coração — um brinde ao que é simples, mas desperta sentimentos profundos”.
“Trabalhar com vinho é o que alimenta minha alma”
Mayara Machado Dias, Itália
Mayara é umas uma das brasileiras ‘quase fronteiriças’ dessa reportagem, e também egressa da Unipampa, de Dom Pedrito, cidade praticamente vizinha do Uruguai. No primeiro emprego já como enóloga foi pra outra fronteira e em Uruguaiana, quase Argentina, fez um estágio no vinhedo da Bodega Sossego. Logo após fui fazer a vinificação da uva em uma vinícola da Serra, onde me apaixonei e vi as possibilidades de crescimento profissional”, lembra. Terminado o período de estágio fez as malas e ‘se abancou’ na Serra durante um período: trabalhou no varejo da Milantino e no setor comercial regional Peterlongo até começar a fazer o que queria: foi pelas mãos de Alejandro Cardozo na EBV Urban Winery, de Caxias do Sul, que passou a trabalhar na produção, onde ficou por cerca de quatro anos. Depois disso abriu sua própria empresa de prestação de serviços com foco em pequenas empresas, negócio que tocou até meados deste ano quando, novamente, resolveu arrumar as malas – desta vez para ir um pouco mais longe.
Itália, uma paixão à primeira vista
“Em 2023, relembrei de um sonho guardado desde 2015, sair do país para fazer safra e ter uma experiência. Em 2024 realizei este grande sonho fazendo minha primeira safra fora do Brasil, na região do Friuli, na Itália.” Foi ali o começo da virada: “a Itália foi paixão à primeira vista, primeiro gole e primeira garfada”, se declara.
Mas antes de se estabelecer no Velho Mundo Mayara teve ainda mais uma experiência no Brasil, desta vez com uma novidade para ela. Trabalho na gestão dos processos e elaboração de vinhos na vinícola Davo, no sul de São Paulo, onde pode acompanhar na prática também a colheita de inverno.
Atualmente Mayara está de mudança para o Trentino, no Norte da Itália, onde vai atuar na elaboração de vinhos e espumantes.
A opção pela Itália
“O país tem dificuldade de mão de obra jovem e um potencial grandíssimo para o desenvolvimento profissional de quem realmente quer trabalhar”, conta, além disso, a qualidade de vida, oportunidades, tradições e inovações vitivinícolas unidos ao meu esposo, que também é enólogo e vitivinicultor italiano, me fizeram optar por essa mudança radical na minha vida”.
As diferenças entre Brasil e Itália
É fato que quando olhamos as coisas de fora passamos a enxergar com mais clareza, e foi isso que Mayara sentiu ao sair do Brasil: “percebi o grande potencial do país para a elaboração de vinhos. Mesmo o Brasil sendo tão jovem temos muita qualidade e enorme potencial de desenvolvimento vitivinícola. A principal diferença é a jovialidade do Brasil, o que muitas vezes faz com que as tecnologias que já funcionam há muito tempo fora sejam ainda novidades para nós, tornando-nos ‘atrasados’ em algumas áreas”, diz. Mas garante que há uma parte boa nisso: “quando as tecnologias chegam aqui elas já estão validadas. Continuo acreditando no país como um excelente produtor de vinhos finos, de todos os tipos, por sua dimensão”, garante.
Estrangeira e mulher
Para seguir o raciocínio de Mayara aqui pense que já és um enólogo com bom conhecimento, alguma experiência e imagine uma escala de 0 a 10. “No lugar de começar ali por volta do 6 em uma nova empresa, deves começar no 2”, diz a enóloga, “pois tens de demonstrar e revalidar o que já sabes”, esclarece. E segundo ela, o fato de ser mulher complica mais: “no ramo da enologia acaba se tornando um pouco mais difícil recomeçar a vida no Velho Mundo, porém nada impossível”.
Mesmo com as dificuldades, Mayara é direta e não pensa duas vezes em aconselhar quem queria fazer o mesmo e tentar a vida na Enologia fora do Brasil: “Vá! Vá o quanto antes, vá de mente e coração abertos. No mundo existem pessoas más, mas existem muito mais pessoas legais e dispostas a ajudarem com o que for preciso”.
O que é Enologia, Mayara?
“É a minha vida! É o que sei fazer. É o que gosto de fazer. É onde me redescubro e vejo quem sou. A Enologia é o ‘lugar’ que me deu amigos para a vida toda, onde posso viver coisas muito diversas no mesmo dia. São os desafios enológicos e experiências que me movem! A cantina é o lugar que gosto de estar: trabalhar com vinho é o que alimenta minha alma.”
“A Enologia não tem uma regra fixa”
Monica Rosseti, Itália
Impossível falarmos sobre enólogas brasileiras fora do país e não citarmos Monica Rossetti, uma das pioneiras em desbravar o Velho Mundo. A gaúcha que neste ano completa 25 anos de profissão, fez sua formação no Técnico e na sequência Tecnólogo no Instituto Federal, em Bento Gonçalves, antes de suas diversas especializações na Itália, em cursos interdisciplinares entre as universidades de Padova, Udine, SanMichele all’Adige e Verona.
O começo
O início da vida profissional de Monica foi na Chandon do Brasil em Garibaldi, no laboratório de controle qualidade. Em determinado momento começou a trabalhar também com a Lidio Carraro e a viajar para a Itália: “nessa época eu já estava imaginando um percurso de formação e colaboração no exterior”, conta. A primeira safra na Itália foi em 2003, e desde então Monica sempre manteve a conexão entre os dois países.
A enóloga foi diretora técnica responsável da Lidio Carraro por 17 anos, tempo em que vivia alguns meses no Brasil, outros na Europa: “uma dupla vida de trabalho e de experiência pessoal, com a Dupla Cidadania”. Isso permitiu que Monica realizasse diversos cursos por lá, além de prestar consultoria a empresas italianas: “fiz duas safras em colaboração com o Grupo Lunelli, que é do espumante Ferrari, depois dessa experiência passei a prestar consultoria para o grupo e também para a Tenuta Podernovo, na Toscana”, conta, “iniciei também um trabalho com a Cascina Eugenia 1641, no Piemonte”, lembra, “me envolvi com diversas outras empresas, são vários e vários anos de colaboração aqui na Itália”, reflete.
Empreendedorismo
Em 2007 veio a decisão definitiva e Monica passou a morar no Velho Mundo, mais especificamente em Coneliano, na região do Vêneto. Foi nessa época também que começou a botar em prática o AnimaVits, seu projeto de viticultura e enologia de precisão. “Eu coordenei todo esse trabalho desenvolvendo do zero a tecnologia e o método, buscando identificação de terroir, valorização das parcelas e uma gestão mais sustentável. Paralelamente a isso, dei foco em biológico e biodinâmico, buscando justamente melhorar aquilo que é a integração entre o mais natural possível e os recursos tecnológicos”. A enóloga lembra que sempre há o imponderável: “a Enologia não tem uma regra fixa. É muito importante entender o território, as uvas e as pessoas e buscar otimizar um resultado considerando todos os fatores. E quanto mais se exercita isso mais competência se cria e mais talento se desenvolve.”
A posterior criação da Rosseti Enologia veio para oficializar a ponte entre Brasil e Itália construída por Monica: “sempre mantive trabalhos ativos nos dois países, inclusive em regiões distintas, com diferentes uvas e vinhos, fazendo parte da equipe de diversas empresas também”.
Inicialmente a ideia de Monica era ter uma experiência de trabalho para obter mais conhecimento em um dos países que é o maior produtor de vinho do mundo: “tendo a possibilidade de trabalhar como consultora me orgulha muito, é um aprendizado constante”, confessa, “sou chamada para resolver atividades conectadas ao vinho, mas aprendo muito em termos de equipe, de qualidade de trabalho, de visão, de objetivo e de qualidade de vida. É algo muito positivo em todos os aspectos para o meu percurso profissional e acaba sendo também uma linda experiência de vida”.
Ser estrangeira
“O objetivo que eu tinha era justamente criar algo novo, o que foi um duplo desafio: no início inclusive a língua e o fato de não ter uma estrutura estável, não ter a segurança de estar em casa. Acho que esse é o primeiro limite que a gente carrega”, reflete, “para mim foi o primeiro e o mais importante desafio”. Mas a enóloga pondera ainda sobre a importância das contraposições: “um outro aspecto que eu acho fundamental é que as diferenças, na verdade, acabam se complementando”.
Itália e Brasil em momentos diversos
“A Itália é tradição, memória, história que se transmite de geração a geração, o Brasil vive algo que é o novo, é preciso iniciar, descobrir, se readaptar”, argumenta, “interpretamos o que fazer porque não tivemos esse processo de construção de centenas de anos, como aconteceu na Itália, em alguns casos”.
Para Monica, o momento de produção é muito diferente entre os dois países: “colocamos em confronto um país que tem uma tradição reconhecida com o Brasil, que está em pleno desenvolvimento da atividade vitivinícola”, conclui.
Clareza nos objetivos
Monica incentiva quem pensa em buscar oportunidades de trabalho no exterior, e salienta a importância de ter um objetivo claro. De acordo com ela desta forma o percurso fica menos complicado: “em nenhum lugar hoje é simples”, reforça, “mas o sacrifício se transforma em algo de alta valorização porque dá significado para a conquista, e com certeza vale a pena.”
O que é Enologia, Monica?
“A Enologia é o meu trabalho e a minha paixão, me alegra e me melhora a cada dia!”
“Mergulhe de cabeça, mas com humildade”
Rafaela Zimieski, Itália
“Sempre sonhei em estudar fora do Brasil e aprofundar meu conhecimento na cultura italiana, da qual sou descendente”. Como é bom falar com pessoas que realizam seus sonhos, como Rafaela Zimieski. Pois foi a oportunidade de fazer a dupla diplomação na Universidade de Udine que abriu as portas dos vinhos italianos na trajetória profissional da enóloga.
Com graduação pelo Instituto Federal de Bento Gonçalves, Instituição com a qual ainda mantém vínculo como mestranda, Rafaela há sete anos divide a morada entre Brasil e Itália, trabalhando na vinícola Pra Della Luna, em Talmassons, região do Friuli Venezia Giulia, onde é responsável pela parte comercial e na representação da marca no Brasil – durante a safra fica na Itália para atuando no laboratório de análises físico-químicas, prezando pelo processo de qualidade.
O início na profissão
“Meu primeiro contato profissional com o setor foi na vinícola Pizzato, na área de Enoturismo, onde trabalhei por quase dois anos atuando diretamente com o público e na parte comercial dos produtos. Essa experiência foi fundamental para meu
desenvolvimento pessoal e para aprimorar minhas habilidades de comunicação”, rememora, “aos poucos, além da paixão pela química, descobri também o interesse pela gestão e pela área comercial do vinho”.
Rafaela iniciou dois cursos de graduação até achar sua vocação na Enologia: “sempre fui apaixonada pela vitivinicultura, mas na juventude ainda não pensava em seguir carreira profissional na área”, confessa. Durante sua formação na Serra Gaúcha participou de estágios em vinícolas durante a safra, adquirindo experiência prática e teórica em análises laboratoriais, o que a preparou para atuar na Itália.
As diferenças entre Itália e Brasil
“A Itália possui uma tradição milenar no vinho, com regiões que preservam suas uvas, métodos de produção e leis rígidas que garantem o estilo de cada vinho. O vinho faz parte
do cotidiano italiano, quase como o pão na mesa”, relata, “o Brasil, por sua vez, tem uma história mais recente, desenvolvida a partir da chegada dos imigrantes italianos no Sul. Nosso maior desafio sempre foi o clima, que exige criatividade e inovação dos enólogos”, pontua. Rafaela avalia que a abordagem moderna faz com que os vinhos brasileiros se destaquem por frescor e ótima acidez – especialmente, pelos espumantes, reconhecidos mundialmente. “Enquanto a Itália se apoia na tradição, o Brasil valoriza a inovação”, complementa a enóloga, “ainda estamos construindo nossa história, mas com uma identidade própria que já chama atenção no cenário internacional”, comemora.
Respeito e novas perspectivas
Para Rafaela ser estrangeiro nessa área traz desafios: “é preciso se adaptar: cada país tem suas uvas, clima e cultura em torno do vinho, exigindo atenção para entender e respeitar a identidade local. Por outro lado, ser estrangeiro é também uma riqueza, pois trazemos experiências diferentes e uma bagagem cultural que pode abrir novas perspectivas.”.
E para quem quer tentar a vida fora do Brasil, Rafaela indica: “mergulhe de cabeça, mas com humildade. É fundamental estudar, ouvir, entender e respeitar a cultura local. Ao mesmo tempo, não tenha medo de trazer sua própria bagagem e olhar diferente. Para mim, essa combinação de respeito e inovação é o que faz a diferença.”
O que é Enologia, Rafaela?
“Enologia para mim é vida. É a vida que ressurge através da ciência e que se transforma em momentos únicos e emocionantes para os consumidores. É permitir que cada pessoa viva a sua própria experiência ao abrir uma garrafa, em qualquer que seja a ocasião. Como dizem na Itália: “L’acqua fa male e il vino fa cantare”. Ou seja, a água pode até matar a sede, mas é o vinho que traz alegria e faz cantar.”
“Portugal está para um enólogo, como a Disney para uma criança”
Filipe Souza, Portugal
Filipe saiu do calor do Rio de Janeiro para estudar Enologia, em Dom Pedrito, na Campanha Gaúcha, quase no Uruguai. Rodou mais um pouco até chegar em seu primeiro emprego, um estágio durante da vindima da Safra das Safras, em 2020, em uma vinícola com alta produção de espumantes em Bento Gonçalves: “Foi muito rápido, mas pude perceber os desafios que precisaria ultrapassar dentro da profissão”, lembra.
A vida profissional de Filipe passou por uma reviravolta antes de chegar à Enologia, ainda morando no Rio de Janeiro, na metade do curso de Direito percebeu que não era aquilo que queria para sua vida: “depois de algumas viagens por regiões vinícolas do velho continente comecei a me apaixonar pelo mundo da Enologia e fui muito incentivado a investir nesse projeto e ir para o Sul do país”.
A vontade de trabalhar na área
Quando terminou o bacharelado na Unipampa logo quis exercer o que havia aprendido nos quase cinco anos de graduação. Pensou em trabalhar com uma adega da Campanha Gaúcha ou em algum projeto de Enologia próximo ao Planalto Central ou no Sudeste, mas em 2019 Filipe passou a pesquisar a possibilidade do mestrado fora do Brasil como uma forma de agregar mais conhecimento para exercer a profissão.
A pandemia segurou os planos um pouco, mas o enólogo se manteve ativo pesquisando e buscando opções online, como resultado disso foi aceito em três diferentes universidades, uma francesa e duas portuguesas. Ao final optou por seguir seus estudos na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e se transferiu para Portugal.
Abraçado pela cultura
Atualmente Filipe vive em Viseu, capital do Dão, e trabalha como enólogo residente na Adega 2.5-Vinhos de Belmonte (DOC Beira Interior), uma vinícola que produz vinhos a partir de castas autóctones da região da Beira Interior como a Rufete (tinta) e a Fonte Cal (branca). “São castas muito interessantes pelo perfil organolético do vinho, mas por não possuir um perfil sensorial vulgar”, detalha, “são duas joias da incrível região demarcada da Beira Interior”.
Sobre a opção por Portugal, Filipe explica que o país inicialmente atraiu sua atenção pela parte acadêmica, mas que rapidamente foi abraçado pela cultura luso-vitivinícola: “digo sempre que Portugal está para um enólogo, como a Disney para uma criança”, brinca.
As diferenças entre a Enologia de Portugal e Brasil
Comparar os países é algo injusto no ponto de vista de Filipe: “a cultura do vinho em Portugal vem desde os acampamentos romanos na Península Ibérica. Dentro da realidade brasileira, a cultura do vinho tem crescido muito e as empresas do setor têm buscado valorizar o trabalho dentro da Enologia, principalmente no uso tecnológico, mas penso que no Brasil, devido à falta estações mais definidas e condição da natureza do solo, precisamos ser mais inventivos na hora de elaborar o vinho”.
Importante lembrar que Filipe está no Dão, uma das mais tradicionais regiões vitivinícolas do mundo: “aqui onde estou a prática enológica é muito preocupada no respeito às origens, em saber, por exemplo, que aquela uva que chegou a adega é a representação da zona em que ela cresceu”, conta. No caso da tecnologia, Filipe explica que, diferente de outras regiões europeias mais ricas, a tecnologia sim é algo importante na adega, mas em Portugal a essência da adega é humana: “sempre precisamos seguir protocolos, são mais conservadores para, em tese, não mudar a essência”.
Atenção redobrada e crescimento profissional
Sobre o fato de ser estrangeiro, Filipe avalia que a dificuldade relativamente seja a mesma em todo lado: “precisamos é ter
resiliência e muita vontade de acertar. Às vezes, como estrangeiro, para se chegar do ponto A ao B, você vai precisar ir antes ao H”, explica, divertido, “mas se inevitavelmente você precisar fazer essa ação mais demorada, é preciso atenção no resultado, mesmo que seja 35% do esperado, deve-se comemorar os 35% como se fossem 100% – e de preferência com um espumante!”
Quem quiser trabalhar com Enologia em Portugal vai encontrar um excelente ambiente para crescer como profissional, garante Filipe. O enólogo conta também que, claro, existem alguns desafios que podem dificultar isso um pouco: “a primeira coisa é entrar em Portugal com a documentação em conformidade com a legislação portuguesa, o que traz segurança dentro do país. Depois buscar empresas indicadas por alguém – é mais fácil já saber como é o ambiente de trabalho, se a empresa oferece, por exemplo, hospedagem, alimentação e é claro, salário”, esclarece, “e venha com vontade de aprender e com carteira de motorista – longe dos grandes centros o transporte público é quase inexistente, portanto, ter autonomia é muito importante. E por último, o enólogo aqui precisa ser polivalente, ou seja, saber ou ter noção de um pouco de tudo dentro de uma vinícola, desde o controle de maturação das uvas no vinhedo até por as caixas de vinho no palete para o estoque. Isso vai destacar você como profissional. Devido a escassez de mão-de-obra que existe na europa, é fundamental ser um profissional ‘autônomo’ dentro da adega”, esclarece, ‘é o famoso ‘se desenrascar’! “
O que é Enologia, Filipe?
“Enologia para mim é parte da minha vida”
“A Enologia é uma profissão que respeita muito o conhecimento e a experiência”
Henrique Tassinari Gabbi, Portugal
Henrique é surfista e, veja bem, escolheu se estabelecer em Portugal porque este é um dos poucos lugares do mundo onde diz que se pode produzir vinhos de altíssima qualidade tão perto do litoral. “Como cresci na costa e sempre senti falta do mar, e aqui consigo conciliar a vida de surfe e praia com a carreira de enólogo, o que para mim é um equilíbrio perfeito”, diz. Henrique nasceu em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, mas cresceu em Osório, que fica no Litoral Norte.
Sua formação foi no Instituto Federal de Bento Gonçalves, e durante os estudos esteve um ano e meio na Universidade de Davis, na Califórnia. Lá pode acompanhar a poda das vinhas e diversas pesquisas “foi uma experiência que mudou minha vida completamente, principalmente pela experiência prática e pelas pesquisas que pude acompanhar.”
Mais tarde estagiou também na Universidade de Cádiz, na Espanha, e foi a partir dali que começou a roda mundo – em cerca de cinco anos passou por seis países: Chile, Califórnia, França, Nova Zelândia, Líbano e África do Sul, sempre envolvido com a produção de vinhos. “Nos primeiros anos, eu dizia que tinha feito a vindima nesses países, mas, na realidade, tive muita sorte de trabalhar além da vindima em todos os lugares que passei, com envolvimento em todas as etapas de produção”, lembra, ”e nos últimos anos, me aproximei mais de vinícolas biodinâmicas e de produção mais limitada”.
Passado esse tempo foi aceito no mestrado Vinifera, com o primeiro ano em Montpellier, na França, e o segundo em Lisboa. Em maio de 2025 começou a trabalhar como enólogo assistente, na Quinta de Chocapalha, uma vinícola que fica em Alenquer, região vitivinícola de Lisboa.
Diferenças e semelhanças
Em termos de Enologia Henrique afirma que produção é muito parecida com a do Brasil, com métodos mais convencionais: “mas eu diria que os enólogos gaúchos são melhor formados. Aprendemos a lidar com diversos estilos de vinho e a enfrentar as adversidades com muita habilidade”, garante. O enólogo diz também que em outros lugares onde viveu existe uma maior especialização, com foco nos vinhos que são produzidos em suas regiões, enquanto no RS os enólogos normalmente sabem produzir vinhos tranquilos, espumantes, frisantes, entre outros.
Ser estrangeiro não é diferente
Para Henrique não há barreiras em ser estrangeiro: “a Enologia é uma profissão que respeita muito o conhecimento e a experiência, e no final das contas, a paixão e o esforço para aprender falam mais alto do que a sua origem de onde você vem”. Mas ele assegura que é importante entender as especificidades de cada lugar e se adaptar ao terroir local: “mas no geral a profissão acolhe quem tem vontade de crescer.”
Conversar com quem já trabalhou nos locais onde gostarias de estar é a dica de Henrique para quem quer ir para fora do país. “Não tenha medo de dar o primeiro passo. Essas conversas podem te dar uma visão mais realista e ajudar a tomar decisões mais acertadas”, finaliza.
O que é Enologia, Henrique?
“Enologia pra mim é respeitar e cultivar o belíssimo trabalho das vinhas e do viticultor!”
“Me sinto viva toda vez que piso na adega”
Lariza Camelatto, Portugal
Lariza saiu de Pelotas (RS), onde fez sua graduação no IFSUL – Campus CAVG e trabalhou em diversos locais da região Sul do Brasil antes de ir para Portugal, onde está hoje.
Seu primeiro estágio foi na unidade da vinícola Campestre em Campestre da Serra (RS), onde é produzido o vinho Pérgola, o mais vendido do Brasil há 11 anos ininterruptos. Lá o foco da enóloga era o laboratório, fazendo o controle analítico-fermentativo dos mostos, assim como parte de inoculação e controle de qualidade no envase da empresa. Foi seu primeiro contato com a Enologia na prática, e trabalhando em laboratório descobriu que o que gostava mesmo era do setor de produção.
Chão de fábrica
E foi o que fez na experiência que teve em Santa Catarina, atuando como enóloga na vinícola Villaggio Grando, em Caçador: “considero um marco na minha carreira pois foi onde estive pela primeira vez a frente de uma produção, como enóloga, e trabalhando com o enólogo consultor da empresa na época, o mestre português António Saramago, o qual acabou se tornando um grande amigo”, conta.
Depois da Villaggio Grando, Lariza passou pelas vinícolas Peruzzo, em Bagé (RS) e Bebber em Flores da Cunha (RS), onde começou como cantineira e chegou a gerente de produção: “foi um tempo de crescimento profissional e pessoal muito significativo, fiz cursos de liderança, aprendi a gerir equipe e produção e passei a ter o protagonismo que o enólogo chefe e proprietário Felipe Bebber me incentivava a ter”, conta, agradecida, “muito da minha técnica foi formada e aperfeiçoada lá com o Felipe, e sou imensamente grata a ele pela confiança e aprendizado”.
Ampliando os horizontes
Em meados de fevereiro de 2024 Lariza foi chamada para fazer uma vindima em Portugal. “Quando vim, em agosto de 2024, fui para a região do Norte, nos vinhos verdes, na adega Quinta de Santiago, onde trabalhei como enóloga residente”, conta.
Atualmente mora em Sesimbra e está a frente de um projeto novamente ao lado de António Saramago – a Sangue Real na região vitivinícola Península de Setúbal. “Decidi vir porque sempre fui apaixonada por vinho tinto, extração, estrutura, o mesmo para os brancos. O combustível da minha carreira e do meu amor pela Enologia sempre foi poder trabalhar com várias castas diferentes, tanto tintas quanto brancas, testar diversas formas de produção, fazer tintos estruturados e, principalmente, poder tomar decisões e estar à frente de algo”.
Na Sangue Real Lariza está à frente uma equipe de produção e tem autonomia para as tomadas de decisões diárias: “resolvo que metodologia seguir, de que forma fazer, que insumo utilizar, tudo. E trabalho com diferentes castas brancas além de uma boa diversidade de tintas, faço vinhos extremamente estruturados: me sinto viva toda vez que piso na adega”.
Tão viva que o pensamento de voltar ainda não passa pela cabeça da enóloga: “agora estou muito feliz onde estou exercendo a profissão, mas penso futuramente em dar consultoria a produtores do Brasil. E mais futuramente ainda, não se sabe…”, deixa no ar.
A Enologia de Portugal x Brasil
A tradição, mais uma vez, fala mais alto: “a principal diferença que percebo é a tradição profundamente enraizada que Portugal carrega. Há uma cultura de preservação do estilo dos vinhos, das castas autóctones e das práticas tradicionais”, explica, “no Brasil, por outro lado, sentimos uma energia muito forte de inovação e de experimentação”
Podemos resumir em humildade
Portugal tem muitas semelhanças com o Brasil, mas também tem muitas diferenças. Lariza esclarece que a adaptação cultural exige flexibilidade desde a forma de comunicação até o entendimento das práticas locais: “muitos termos técnicos usados aqui nunca são ditos no Brasil, assim como muitos objetos e máquinas de trabalho são chamados de formas completamente diferentes”. A enóloga aponta que o maior desafio é conquistar espaço e confiança: “é preciso provar competência com muita humildade e responsabilidade e manter a mente aberta para aprender”, complementa.
Para quem tem o pensamento de tentar a vida em Portugal, Lariza indica se preparar muito emocionalmente: “por mais que a gente se prepare, chegamos aqui e percebemos que nunca estaremos preparados o suficiente”, reflete, e adverte, “aconselho que quem vier venha sabendo que vai passar por momentos muito difíceis no começo, mas que melhora com o tempo. Precisa vir com mente aberta para aprender, como se estivesse vindo ser apenas um estagiário, porque chegar aqui com a mentalidade de que sabe tudo e de que vai ser como no Brasil, só dificultará radicalmente o processo e o fará falhar em tudo”. A enóloga que se sente’ viva’ toda vez que pisa na adega, faz questão de deixar um conselho sempre valioso: “eu sempre carreguei comigo algumas palavras que são mais ou menos assim: o saber ocupa espaço e quem acha que sabe tudo, não sabe de nada. Eu sempre gosto de dizer que não sei de nada, assim, sempre tenho espaço para aprender. E isso é o que me traz sucesso profissional até hoje. Podemos resumir em humildade.”
O que é Enologia, Lariza?
“Pra mim é ser um alquimista. É trabalhar principalmente nos detalhes, saber o momento de agir e de não agir. Acredito que não há como estar nessa profissão e ter sucesso, se não for apaixonado pela área. Enologia pra mim não é aquele clichê de transformar o fruto em história engarrafada, mas sim uma riqueza de detalhes e percepções que devem ser feitos e observados por quem ama o que está fazendo”.
“Não tenha medo de arriscar: sair do país exige coragem e determinação”
Maria Rosa Costella, Portugal
Rosa fez a graduação na Unipampa, em Dom Pedrito, e sua primeira oportunidade de emprego surgiu durante o estágio final na vinícola Abreu Garcia, de Campo Belo do Sul (SC). Mas antes disso teve uma experiência com a produção de suco de uva, na Casa da Uva Boa, em Jaborá (SC). “Esses quatro meses de vivência consolidaram uma base ainda sólida e diversificada para minha trajetória como enóloga”, diz.
Depois de uma safra na vinícola Campos de Cima, em Itaqui (RS), Rosa entrou no mestrado em Agronomia pela Universidade Federal de Pelotas, no Programa de Pós-Graduação em Fruticultura de Clima Temperado. O projeto foi desenvolvido em parceria com a Estação Experimental de Videira – Epagri (SC), onde pode acompanhar de perto e realizar todas as etapas do experimento com um grupo de variedades resistentes (PIWI).
Seguindo nas pesquisas Rosa iniciou doutorado, desenvolvendo pesquisa com variedades viníferas tintas na Campanha Gaúcha, especificamente no município de Quaraí (RS). “Esse movimento abriu portas para minha experiência internacional atual, por meio do processo seletivo do programa Doutorado Sanduíche no Exterior, promovido pela CAPES.”
Hoje Rosa mora no Porto e há 9 meses é integrante do projeto International Master on Wine Tourism Transitions and Innovations, coordenado pelo professor Jorge Queiroz. “Nosso trabalho de pesquisa está sendo realizado na vinícola Vinevinu, em Vila Nova do Famalicão, na Região dos Vinhos Verdes, noroeste de Portugal”, explica, “minha colaboração concentra-se nas atividades pós-vindima.”
A decisão por sair
Rosa trocou o Brasil por Portugal basicamente para sair da zona de conforto. “Penso em três eixos de crescimento: o acadêmico, ao enfrentar o desafio de uma formação internacional de alto nível; o profissional, pela oportunidade de vivenciar diferentes técnicas vitivinícolas, explorar novas regiões produtoras e interagir com profissionais experientes, enriquecendo minha trajetória como enóloga e pesquisadora; e o pessoal, pois viver em outro país proporciona crescimento, aprendizado cultural e ampliação de horizontes, tornando-me mais adaptável e preparada para os desafios globais do setor da uva e do vinho”.
Portugal x Brasil
Quando questionada sobre as diferenças da Enologia entre os dois países Rosa elenca uma grande lista, que vai desde os preços muito acessíveis dos bons vinhos nos mercados até a força do Turismo e do Enoturismo passando pelas diferenças de nomenclatura de diversos termos técnicos e equipamentos. “Além disso, claro, Portugal é um país milenar no quesito da Viticultura e Enologia, o que reflete diretamente ao reconhecimento com DOC consolidado e forte prestígio internacional, enquanto o Brasil é um mercado em expansão.”
Os entraves para a mudança
Os aspectos burocráticos de uma mudança de país são apontados por Rosa talvez como os principais obstáculos para um estrangeiro. “Autorizações de bolsa de estudos ou de trabalho às vezes demoram, e isso dificulta bastante no processo de planejamento e na aquisição de passagens, por exemplo.”
Mesmo assim Rosa é enfática ao dar uma dica para quem quer passar por essa experiência: “sonhe alto, porque o céu é o limite! Trace metas, planeje e prepare-se, inclusive no aspecto emocional, pois deixar a zona de conforto nunca é fácil. Não tenha medo de arriscar: sair do país exige coragem e determinação, mas cada desafio abre portas para um crescimento extraordinário. E, acima de tudo, mantenha-se flexível e aberto a aprender. Cada cultura, cada vinhedo, cada adega e cada pessoa que cruzamos acrescenta algo único à nossa trajetória, seja como lição ou como inspiração.”
O que é Enologia, Rosa?
“Enologia para mim é aprender todos os dias, do vinhedo à taça, é respeitar a natureza e traduzir cada terroir em uma identidade única!”
Fotos: arquivo pessoal dos entrevistados
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