Nessa breve série que fizemos sobre o Brazil Wine Challenge – concurso internacional de vinhos organizado pela Associação Brasileira de Enologia, que será realizado em Bento Gonçalves (RS) entre os dias 16 e 19 de julho – detalhamos a prova em si, sua importância no cenário internacional, a relevância da chancela da Organização Internacional da Vinha e do Vinho e citamos outras disputas com as quais podemos comparar o BWC de diversas maneiras.
Também mostramos os bastidores do concurso, localizamos no tempo quando tudo começa a tomar forma, as fases de divulgação, início das inscrições e recebimento de amostras, a logística de ‘blindar’ as garrafas para que não sejam identificadas, a preparação para os dias de degustação, o serviço, o trabalho do júri e a ficha de avaliação digital que cada degustador deve preencher.
Agora vamos finalizar exatamente com a degustação. Trocamos ideias com três pessoas especialistas na arte de degustar, profissionais do vinho com ‘litragem’ acumulada em concursos, mostras, disputas e degustações – formais e informais.
Ricardo Morari, presidente da ABE e coordenador geral do BWC explica que os degustadores são, em sua maioria, enólogos brasileiros e estrangeiros – a presidência de cada mesa fica a cargo de um brasileiro. O restante do júri é mais heterogêneo: “são profissionais selecionados entre os melhores especialistas, reconhecidos em matéria de degustação pela sua competência nos setores de produção, comercialização, consumo e mídia”, avalia.
Com experiência de degustação em mais de 20 concursos somente no Brasil e vários outros pelo exterior, sempre representando nosso país, Morari é indicado para dar orientações a quem se prepara para essa bateria de avaliações: “A recomendação é que cada um esteja descansado e com sua atenção voltada à análise do vinho. Como são muitas amostras, toda a concentração é fundamental para que cada uma delas seja avaliada corretamente”. O enólogo faz ainda uma observação importante – e difícil de cumprir nos dias de hoje: “é primordial evitar o uso de celular ou dispositivos que façam os degustadores perderem a concentração”, alerta. Morari afirma também que é preciso impedir conversas paralelas durante a degustação: “a análise deve ser individual e não comparativa”, lembra.
Mas como lidar com a questão da subjetividade? “Deve-se evitar julgamentos que levem em conta o gosto pessoal. Penalizar um vinho por ter uma cor pouco intensa ou mais evoluída daquilo ‘que eu gosto’, por exemplo, é subjetivo e não deve ocorrer”, pondera.
Deisi da Costa (foto acima), sommelière profissional, atua na área há pelo menos 10 anos, e já participou de diversas degustações e concursos, entre eles o BWC em 2020. Michael Waller (foto abaixo), escritor, pesquisador e colunista de vinhos, figura conhecida por frequentar e promover degustações, estará entre os 85 jurados do BWC 2024. Confira abaixo as respostas que cada um deles deu para as mesmas perguntas.
Como se preparar para uma degustação dessas?
Deisi da Costa – Toda degustação técnica exige mais atenção aos cuidados prévios. Primeiro eu diria que varia muito de acordo com o concurso ou a chancela, varia de país para país e desta forma a preocupação de cada degustador se torna diferente. Na minha opinião deveria ser regra que todos se preparassem a ponto de estar nivelados, principalmente num grupo de jurados da mesma mesa.
Michael Waller – Alguns dias antes é bom evitar a alimentação mais pesada e evitar a bebida, porque tens que estar descansado e com a saúde em dia. Vai te exigir concentração e avaliação sensorial. Quanto mais saudável estiveres, sem gripe e com o nariz descongestionado, melhor. É importante também ter noites boas de sono.
Algum cuidado prévio com a saúde e com a alimentação?
DdC – Sobre a saúde é sempre bom manter a rotina de exercícios físicos, principalmente na semana da degustação – isso não ajuda a encontrar aromas, mas a entrar no concurso com a mente arejada e conectada com o ‘agora’. Antes do concurso temos que evitar alimentos que irritam ou impregnam o paladar como pimentas, alimentos super salgados como alcaparras e claro, sempre reforçar o café da manhã, afinal, degustador com fome é pontuação baixa na certa, rs. É uma brincadeira, mas refiro a nunca entrar num concurso sem ter tido uma refeição – leve de preferência – previamente.
Pela manhã escovar os dentes, tomar café preto, suco de laranja: pode, não pode, é mito que isso atrapalha ou é verdade?
DdC – Café atrapalha sim. Eu faço degustações matinais quase que rotineiras – fichas técnicas para vinícolas, prefiro pela manhã – e tenho certeza que o café preto interfere sim, afinal fica impregnado e até você recuperar as papilas gustativas demora muito tempo. Com relação a ir para concurso sem escovar os dentes para mim é crime com a sociedade, rs. Sim, podemos escovar os dentes, porém se logo em seguida você já vai degustar o vinho, pode ser perigoso. Por isso, é importante a ‘posta em boca’ que é você dar um gole e passar pelo paladar todo, preparando o palato e em seguida desprezando – cuspindo – o líquido, e apenas no seguinte gole daí sim degustar e avaliar.
MK – Eu só evito café e alimentos muito ácidos, cítricos, frutas específicas. Eu tento fazer isso especialmente na manhã do evento, não só de concurso, mas de outros tipos de degustação. O ideal para mim é um chá leve e alguma alimentação também leve. Pessoalmente, pra mim, a alimentação atrapalha. Então, quanto menos eu ingerir alimentos antes da degustação, melhor.
Muitas degustações ocorrem pela manhã: isso é melhor, pior, por que?
DdC – Eu acho melhor. Como faço diversas degustações para empresas, prefiro pela manhã pois a mente está fresca e os sentidos não estão exaustos para avaliações. Mas não significa que degustar em outros momentos do dia vá te prejudicar, não é isso. No meu caso é apenas porque a mente está com o ‘HD’ ainda vazio das preocupações. Quando estudei na Inglaterra um professor sempre me pedia para me acostumar a fazer degustações pela manhã, ele acreditava fielmente que as papilas estão mais preparadas, pois é cedo do dia e ainda não comemos muitos alimentos que podem atrapalhar.
MK – Para mim as degustações que rendem mais são pela manhã. Quando eu viajo e vou fazer degustações técnicas, eu procuro esticar, deixar o almoço mais tarde possível e, às vezes, nem almoço. Procuro fazer o maior número de degustações sem outras alimentações, no máximo um pãozinho neutro e água. Mas isso é uma conduta pessoal.
Estudos, degustações técnicas com mais frequência alguns dias antes, sim, não? Durante quanto tempo?
DdC – Na minha experiência, estudos alguns dias antes só atrapalham, pois me parece que ativamos alguma parte do cérebro que se transforma em preocupação e ansiedade. Portanto, o bom é manter uma rotina de estudo sempre, como um habitual bom sommelier, e perto do concurso deixar rolar aquilo tudo que está armazenado no ‘HD’.
MK – Acho que não faz sentido, não se pode aprender ou treinar alguma coisa dias antes. Até porque uma das características interessantes do grupo de jurados é a diversidade: são as diferentes experiências, algumas mais, outras menos técnicas; algumas mais, outras menos experientes, justamente pra fazer uma média, pra fazer um apanhado geral de opiniões e de avaliações.
E na semana das degustações, como proceder? Intervalos, descanso, muita água, alguma regra, hábito, mania, simpatia?
DdC – Muitas dicas: na semana do concurso o ideal é beber muita água, e sim fazer os intervalos de descanso na rotina, ninguém merece uma mente agitada e pilhada como se fosse um liquidificador ligado. Para mim é fundamental meditar em coisas que fogem do vinho, como viagens de férias, pensar nos amigos e na família, tentar levar o pensamento para fora do vinho. Mas isso varia para cada pessoa.
MK – Evitar degustações antes, no máximo tomar uma taça. Tens de estar descansado, porque normalmente são eventos um pouco mais cansativos, que te exigem não só a mente para fazer reflexão sobre os vinhos, mas também a questão sensorial. Então, não dá pra ir pra balada. Não dá pra fazer um jantar harmonizado e beber bastante. Acho que esse é o principal, uns dias antes pegar mais leve na rotina e dormir bem pra poder estar descansado.
Qual foi a degustação mais longa que já enfrentaste? Onde, quando, tempo, evento?
DdC – Nunca participei de algo mais longo que 4 horas, o que já é muito. Foi no Best Wines, em São Paulo, com um grupo especial de jurados da América do Sul. Foram diversas amostras de vários países e uma tarde toda de degustação. Como acontecia em dois dias, não foi tão pesado, mas degustamos em média 50 rótulos por dia. E o detalhe principal: neste caso totalmente às cegas, sem imaginar país ou categoria de aromáticos ou não aromáticos quando se tratava de castas – ao contrário do que acontece em alguns concursos que predizem o estilo do vinho para guiar a degustação.
MK – Foi uma degustação em São Paulo, em 2017, um evento que tinha muito produtor, muita importadora. Eu cheguei bem cedo, porque tinha vários rótulos que queria conhecer. Lembro que fui fazendo anotações de todos que degustava porque tinha muita coisa que estava curioso, eu tinha pesquisado antes quem ia participar. Era uma degustação aberta, mas era bem técnica, como tinha cobrança de ingresso, era um público selecionado. Se eu não me engano, eu fui a 74 vinhos.
E como não se perder em uma degustação tão longa? Como não confundir as amostras e mascarar o julgamento?
DdC – Isso é tudo controlado por números e códigos de cada vinho. Existe um sistema no computador de cada degustador, então você só vai para o próximo vinho quando for autorizado pela mesa, por isso não é possível se perder e anotar no vinho errado. Geralmente esses sistemas funcionam muito bem, se tornam bem ordenados.
MK – Acho que principalmente um bom controle de registro das avaliações. A ABE tem um software que deixa tudo bem organizado a partir da chegada da amostra, além disso o presidente de mesa conduz as baterias, e o presidente da ABE, ao microfone, faz algumas orientações. É bem fácil.
Alguma dica para quem vai participar do BWC?
DdC – Acho que é importante cuidar da mente e fazer exercícios físicos na semana e é primordial deixar em casa suas preferências de estilo ou categoria de vinho: essa é a dica mais valiosa do mundo, anotem! O concurso não está preocupado com o nosso vinho favorito ou qual vinho eu compraria na gôndola, mas sim com a qualidade de acordo com o que está em taça. Eu sempre faço uma brincadeira na mesa, “essa é minha opinião”:Deisi-Sommeliere terminou. E agora sim, no final de tudo eu digo: esse vinho eu compraria ou não, o que seria minha opinião pessoal, caso alguém da mesa tenha interesse em saber.
MK – Levar a sério o evento, chegar cedo, não se atrasar em nenhum dos dias. Importante também evitar o celular, evitar ficar fazendo postagens e lives. Isso certamente o presidente vai alertar: o uso do celular tira a concentração da pessoa e também dos outros jurados. Se for pra dar uma dica só, seria essa: evite o celular o máximo possível. Foco total no exercício proposto.
Que experiência tiras de cada concurso que participas julgando ou avaliando?
DdC – É sempre uma nova experiência. Em 2020 participei do BWC e foi fantástico lidar com os resultados que tivemos na taça. Isso nos ajuda a abrir o leque de conhecimento e criar repertório baseado em fatos reais e não apenas em vinhos que compramos ou queremos provar. Um concurso é sobre o mercado e não sobre minha adega pessoal, essa para mim é a melhor parte. Sem contar que tomamos conhecimento do que está rondando a indústria no momento, importantíssimo para todos nós profissionais.
MK – Eu acredito que nesse tipo de experiência sempre aprendemos, é uma troca. Sentamos ao lado de jurados que são às vezes jornalistas, comunicadores, algum sommelier, muitos enólogos. Compartilhas tuas opiniões com pessoas de diferentes relacionamentos e atuações – e às vezes têm jurados que nem são profissionais, são amantes do vinho. Sendo bons observadores, podemos aprender muito. Penso que o fundamental é perceber que, apesar da técnica, as avalições vão depender muito do posicionamento de cada pessoa, das experiências prévias que estas pessoas têm com vinho e também com a atuação delas. É interessante, quando sentamos em um grupo para avaliar vinho, percebemos que sempre podemos aprender algo, mas a avaliação sempre terá o viés do avaliador, o que nos ajuda a dialogar com o mercado consumidor e respeitar opiniões diversas.
Alguma consideração que aches importante para contribuir, por favor.
DdC – Uma dica final, comam todo o biscoitinho que tiver na mesa, garanto para vocês que o paladar vai cansar menos e se manter mais preparado durante todo o tempo de degustação, não rejeite o pão ou biscoito da mesa. Há boatos que água limpa paladar, me perdoem os cientistas, não creio muito nisso e sim, tomo muita água nas degustações, mas é para hidratar o cérebro – da desidratação pelo álcool – e não para limpar paladar. Para limpar o paladar de um belo vinho tinto e tânico teríamos que beber uma caixa d’água, com certeza isso não vai acontecer. Portanto, levem a sério o biscoito ou pão. E bebam muita água!
MK – Normalmente nos concursos são observações bem objetivas e breves, não se tem espaço para contextualizações, reflexões ou divagações. É um trabalho bem delimitado, difere de apresentações públicas que são mais lúdicas. São análises objetivas, específicas e que se diferem bastante da maioria das degustações e avaliações comerciais e de entretenimento. No final o que se quer é fazer uma base de dados para depois olhar números, curvas de tendência ou questões que se consiga estratificar números, por isso se abre mão do contexto mais subjetivo e lúdico.
Fotos: imagem de topo e Ricardo Morari, Jeferson Soldi, Deisi da Costa, arquivo pessoal; Michael Waller, Andréia Graiz
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