No início da manhã de sexta-feira, dia 3 de maio, troquei alguns áudios com de Heleno Facchin, sócio da Cooperativa Nova Aliança, morador e proprietário de uma área de vinhedos em Pinto Bandeira, um dos pontos mais altos da Serra Gaúcha.
Não conheço Heleno pessoalmente e fiquei sabendo de sua existência a partir de uma conversa com o enólogo André Gasperin ao apurar informações sobre a devastação na região, depois de chuvas que já se prolongam por quase uma semana e deixam o Rio Grande do Sul em estado de calamidade pública, durante aquele que é considerado o “pior desastre da história do Rio Grande do Sul”.
Após André relatar o ocorrido, recebi mais informações sobre Heleno, vindas de outras pessoas: uma história entre tantas que ainda vamos ouvir, mas carregada de significado e de lições.
Tentei falar com Heleno ontem, mas compreensivelmente não consegui. Hoje pela manhã trocamos longos áudios, e na hora de escrever esse texto, preferi deixar ele contar o que aconteceu e o que passa em sua cabeça. Deixei espaçado propositalmente: há vários silêncios nas gravações.
Assim como Heleno, sabemos, infelizmente há muitos, e mais tarde descobriremos muitos mais. As palavras do homem que vive da terra são duras e sofridas, mas são reais e ditas no calor e na tristeza do momento.
O que podemos fazer agora é contar e compartilhar a história dele, reportar o ocorrido e, dentro do possível, fazer com que essa informação chegue longe e possa, quem sabe, confortar alguns dos muitos que estão em situação parecida, ou até pior, muito pior.
Deus aparece na fala de Heleno, que mais de uma vez agradeceu ao que ele chamou de ‘a mão de Deus’, que desviou e, no caso dele e de sua família, evitou uma tragédia maior.
Nem todos tiveram essa sorte.
Por Lucia Porto
(ao final do texto, fotos feitas por Heleno em fevereiro de 2023 no vinhedo de Merlot plantado em 2018 e que estaria indo para a 5a safra, cujas uvas eram destinadas para elaboração dos vinhos e espumantes da Nova Aliança, cooperativa da qual é sócio)
“Faltam palavras. No meu caso, o áudio fica longo pelo silêncio.
É difícil relatar, sabe? O que aconteceu foi o rompimento de um açude de um vizinho numa área superior. E aí um milhão de quilos de água foram arrastando o que tinha pela frente.
E graças a Deus, ninguém se machucou.
O deslizamento, a enxurrada, passaram a 30 metros da minha casa. E só por Deus para ter desviado mesmo. Porque o caminho natural da água, pela força que ela vinha, era para ser na casa, não era para ser no vinhedo. Então a gente começa a contabilizar a perda agora, de cabeça fria, pensar e refletir. Aí passa de meio milhão de reais, enfim.
A gente faz a conta financeira. Até porque tem compromissos assumidos, todo mundo tem conta para pagar. O sistema de irrigação que não existe mais, está financiado.
Então, tu começas a pensar assim, como é que eu vou construir um vinhedo ou financiar um vinhedo no lugar onde já existe um vinhedo? Tu vais no banco fazer um financiamento, eles vão olhar o croqui da área, tu vais colocar o vinhedo.
Mas calma, já tem um vinhedo financiado nessa área.
Tu vais colocar vinhedo em andares agora, vai fazer o segundo andar?
Então, a gente começa a devanear. E da mesma forma se preocupa agora que está em segurança, em como seguir adiante.
E o meu caso não é isolado. São famílias que vivem disso e vão viver do quê?
Uma reconstrução de um vinhedo é três anos para ele estar em estado produtivo. Ali, no caso, é um trabalho que não se sabe como fazer. É de fato uma reconstrução: uma obra de engenharia. Tem que limpar e construir a área para poder preparar essa área para que possa acolher um novo vinhedo. Foi um hectare de Merlot e meio hectare de Tannat, áreas em que estamos trabalhando há cerca de dez anos, dez anos de investimento, de tempo, de cuidado, de trabalho com o solo, de trabalho com a planta…
O detalhamento disso é uma coisa muito triste que machuca a todos. Junto com o pessoal da cooperativa estamos buscando o levantamento das perdas dos cooperados e de toda essa tragédia, temos um cooperado que está desaparecido em virtude de um soterramento em Faria Lemos, em Bento.
Com isso tu vês que a gente não é nada e que bom que Deus desviou com a mão e evitou a tragédia maior”.