“Não enxergo nada, só concreto e ferro”

“Não enxergo nada, só concreto e ferro”

O que era uma construção de dois andares, virou entulho. O que era uma vinícola familiar, artesanal, parte da história de quatro gerações, virou escombros. Na montanha de tijolos, concreto, ferro e madeira estão lembranças dos Torri, que seguem a trajetória da vinícola Val Feltrina, iniciada por José Torri nos anos 50, em Silveira Martins, região Central do Rio Grande do Sul.

Na foto, da esquerda para a direita Maria Torri Padoin (irmã de Joaquim Torri, avô de Rafael), um homem não identificado, Maria Rossatto Torri (irmã de Thereza Rossatto Torri, avó de Rafael), Irene Torri (cunhada de Joaquim Torri, avô de Rafael), José Torri (bisavô de Rafael) e Virgílio Torri (irmão de Joaquim Torri, avô de Rafael).

Das 14 pipas de polipropileno que Rafael Torri usava para guardar seu vinho na vinícola ele estima que 3 foram salvas. “Essas eu vi que sobraram, três eu tenho certeza: três.” O polipropileno, material mais barato e mais leve que o inox, é também bem menos resistente. Mas era o utilizado por Torri na cantina, localizada na cidade que é berço da Quarta Colônia, um dos municípios que receberam as primeiras levas de imigrantes italianos da região central do estado, dando origem ao 4º núcleo de imigração italiana do Rio Grande do Sul, logo depois de Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Garibaldi.

E o volume de chuva que assolou a Serra Gaúcha desde o final de abril também foi forte por lá. “Não lembro se foi dia 30 ou dia 1º, eu sei que a gente tinha se programado para engarrafar suco de uva. Estávamos com os pallets, tudo preparado”, lembra Rafael. Mas como começou a chover forte e faltou luz, resolveram parar. “Chovia muito, acho que passamos o dia inteiro dormindo”, completa. Sem luz e sem internet, Rafael e família ficaram sem comunicação, alheios ao que acontecia por todo o Rio Grande do Sul.

No dia seguinte, terça feira pela manhã, desceram de casa – Rafael e os pais, Arnaldo e Neida, moravam no piso superior da vinícola – e perceberam que a calçada começara a quebrar: “vi que o dreno que existia ali estava empurrando a estrutura”, conta, “então começamos a monitorar o terreno e percebemos que estava se mexendo”.  À tarde saíram de casa, não podiam correr o risco de ficar presos caso a escada de acesso cedesse. “Mas achamos que não seria tão grave, não trouxemos nada conosco”, lamenta. “Saímos com a roupa do corpo. Nem os documentos, o diploma da faculdade, as coisas, o quadrinho aquele de formado, sabe…ficou tudo lá dentro, nem isso tiramos”, lastima. “Tínhamos feito um muro de concreto bem reforçado na frente, pensamos que ia segurar a terra, saímos só por precaução”.

 

Mas o muro não aguentou e na quarta-feira de tarde tudo veio abaixo. ”Caiu de uma vez só, quebrou tudo”, lembra. “Os dois andares desabaram juntos”, relata Rafael, que viu isso acontecer a uns 20 metros de distância. “Toda hora eu ia ali monitorar, porque as paredes já estavam rachando”. Arnaldo e Neida não viram o desabamento, mas ouviram da casa onde se refugiaram e assim que escutaram o estrondo correram pra fora pra ver o que era.

A vinícola

A sede da Val Feltrina – fundada por José Torri nos anos 50 – já passou por algumas modificações, mas era basicamente o mesmo espaço onde até abril deste ano Rafael e Arnaldo produziam suco de uva e vinho de mesa, com variedades como Bordô, Carmem, Isabel, Concord e Niagara Branca. Uma parte da fruta eles produzem, mas a maioria vem da Serra. O resultado desta produção é parcialmente vendido para uma cooperativa de Santa Maria, que fornece a bebida para merenda escolar e também para alimentação do Exército.

Com registro no MAPA para sucos e vinhos desde 2013 e 2017 respectivamente, a vinícola entrou em uma nova fase depois que Rafael (na foto acima limpando um tanque) finalizou a graduação em Enologia em Bento Gonçalves. “Terminei o curso e vim pra cá, é aqui que quero ficar, isso faz parte da minha história”.

Agora a tradição dos Torri com a uva e com o vinho vai seguir, em novo endereço, mas na mesma localidade que dá nome à vinícola, em uma área que fica a cerca de dois quilômetros do local onde tudo começou. “Eu achei que eu teria um pouco mais tempo para conseguir mudar a vinícola de lugar”, argumenta Rafael, “mas acabou que não deu”. O enólogo complementa dizendo que tem uma área mais segura onde já está implementando os parreirais. “Minha ideia era primeiro terminar os parreirais, porque mudar uma vinícola de lugar, todos os equipamentos, dá uma trabalheira – sem contar o dinheiro que precisa pra tudo isso, não é uma coisa barata”.

As três pipas que Rafael identificou como intactas podem ter até 3 mil litros de vinho. Além disso, por uma análise externa, imagina que cerca de 5 mil das 8 mil garrafas de 1,5 litro de suco já engarrafadas estejam aptas para o consumo. “Existem também tambores de 200 litros, mas estes estão embaixo da casa, no meio dos escombros, só tirando tudo pra saber”, desabafa.

Rafael segue dizendo que sua decisão depende muito do que tirar dos escombros: “se cai uma parede, uma laje, pode ficar alguma máquina inteira ou não, não sei o que estragou”, avalia. “Não enxergo nada, só concreto e ferro. Se não sair nada inteiro de lá, eu vou fazer uma cantininha pequena, uma vinícola bem ‘de fundo de quintal’, bem colonial, só um galpão com as pipas ali, tudo envasado na torneira”, antecipa. “Viver assim, fazer uns 10 mil, 15 mil litros”, resume.

Fotos: Rafael Torri | acervo pessoal

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