O caminho do descaminho: a entrada ilegal de vinhos no Brasil

O caminho do descaminho: a entrada ilegal de vinhos no Brasil

Entenda como rótulos falsificados e descaminhados entram pelas fronteiras brasileiras, o impacto disso para a saúde dos consumidores, para os produtores, e medidas que estão sendo tomadas visando mudar esse cenário.

A falsificação e o descaminho do vinho são responsáveis por uma concorrência desleal com produtores e importadoras brasileiras. Para se ter uma ideia, nos últimos três anos foram apreendidos mais de 531 mil litros de bebidas provenientes apenas de descaminho em ações realizadas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) nas fronteiras. Vindos principalmente da Argentina, eles já estão espalhados pelos estados brasileiros em lojas, restaurantes e nas casas dos consumidores, que se sentem atraídos por preços baixos que chegam a 50% ou menos do valor tradicionalmente cobrado. Esses produtos entram no Brasil de forma criminosa, não são transportados de maneira adequada e podem conter diversas substâncias tóxicas, com potencial para gerar consequências gravíssimas para a saúde do consumidor – até mesmo a morte

Descaminho ou contrabando?        

Primeiro, é preciso diferenciar os termos “descaminho” e “contrabando” e compreender que eles não são tão distantes um do outro. É considerado contrabando todos os produtos proibidos que chegam ao Brasil, como drogas e cigarros eletrônicos. Já o descaminho é a importação de produtos legais, mas sem o pagamento correto dos impostos. Logo, quando tratamos de vinho, falamos de descaminho.

Entretanto, ambos têm suas semelhanças. Para a delegada brasileira na Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) e doutora em Biotecnologia, Fernanda Spinelli, atenção à ilegalidade é o principal: “não analiso de forma diferente. O descaminho são os produtos que não passam pelos trâmites de importação legal. Ele chega ao consumidor final de forma clandestina, é um contrabando. Não se pode afirmar que esses produtos têm a qualidade para consumo, por isso precisamos considerar o pior caso.

A presidente da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), Cristiane Souza Foja, lembra da falsificação e esclarece: “o comércio do vinho no Brasil é permitido. Porém, quando falamos de identidade, não é possível garantir que uma bebida alcoólica que está sendo comercializada ilegalmente seja ela mesma”. A presidente reforça que o vinho só é legal se tiver passado pelos testes do MAPA e cumprir os requisitos mínimos de qualificação, padrão de identidade e qualidade e lembra que o conteúdo da garrafa pode conter substâncias nocivas a saúde: “pode até matar ou causar um dano permanente na pessoa. Então, se for tóxico é proibido e não autorizado. Logo, indiretamente, é contrabando.

A fiscalização conjunta brasileira

Para um vinho ser importado para o Brasil, primeiro é necessário registro no Mapa contendo a atividade de importador da bebida, realizado pelo Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (SIPEAGRO). É necessário também atender o padrão de identidade e qualidade estabelecidos no Brasil, especificados no “cartilhão de bebidas”. É feita uma análise documental, inspeção física da mercadoria e também análises laboratoriais, até a emissão do certificado de inspeção da importação. O processo é acompanhado de perto pelo Mapa, que disponibiliza em seu site detalhes sobre o fluxo da importação no Brasil.

Dentro da regularidade, o MAPA identificou e proibiu a entrada no país de 202 processos de importação de bebidas que apresentavam algum vício insanável no seu padrão de identidade e qualidade durante o período de 2021 a 2023. “Esse é um número muito baixo frente aos cerca de 80 mil processos de importação de bebidas que o MAPA analisa anualmente, o que demonstra a boa qualidade do produto importado regularmente”, aponta Juçara Aparecida André, coordenadora-geral de vinhos e bebidas do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal da Secretaria de Defesa Agropecuária (Dipov/SDA/MAPA).

Quando a importação é realizada pulando essas etapas, por descaminho, a instituição também atua em ações fiscais realizadas nas fronteiras junto às polícias federal, rodoviária federal, estaduais e Receita Federal.

Até o ano de 2012, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) com a fiscalização de trânsito, atendimento aos acidentes, registros e enfrentamento da criminalidade, combatia o mercado ilegal de bebidas alcoólicas diariamente, mas sem grandes envolvimentos.  Desde então, a PRF realiza operações específicas contra itens falsificados, contrabandeados, descaminhados e adulterados, chamadas de combate a pirataria (termo utilizado para se referir a tudo aquilo que está sendo transportado nas rodovias, mas que não atende a legislação), para melhor compreensão da população e policiais em formação.

De acordo com o policial rodoviário federal Marco Antônio Palhano, chefe do setor de enfrentamento aos crimes transfronteiriços e conselheiro representante da PRF no Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos Contra a Propriedade Intelectual (CNCP – SENACON/MJSP), é realizado um trabalho com as entidades que representam o setor, como a Abrabe. Nesta iniciativa as entidades evidenciam quanto o estado brasileiro está perdendo de arrecadação, sobretudo nos casos de descaminho, e os riscos aos quais a população está exposta nos casos relacionados à adulteração e falsificação, considerados crimes contra a saúde pública. “A partir dessa interlocução nós identificamos quais as prováveis rotas de acesso das mercadorias que estão entrando e as fronteiras mais sensíveis. Depois fazemos o planejamento de atuação, tanto no trabalho rotineiro, com policiais lotados nessas regiões, quanto em operações de coordenação nacional”, explica.

Palhano detalha que nesses casos são realizados treinamentos para que os policiais possam atuar da melhor forma e reconhecer rótulos ilegais em flagrante. “Movemos policiais ou especialistas para dar treinamento para o pessoal que trabalha lotado nas regiões identificadas, ou para reforço de efetivo – de policiamento – para coibir e fazer apreensões do que foi flagrado”, conta. Dessa forma, é criado um efeito de dissuasão para que os criminosos evitem aquelas rotas e dessa maneira o fluxo de mercadorias ilegais entrando no Brasil seja diminuído.

Os treinamentos também acontecem na universidade da PRF, em Florianópolis, onde Palhano é um dos docentes, para alunos que chegam do Brasil inteiro. Além disso, a Abrabe contribui a partir de um comitê de combate ao mercado ilegal, no qual as marcas se reúnem para realizar um trabalho de treinamento das policias visando difundir conhecimento para a identificação rápida da bebida ilegal. O policial afirma que, a dinâmica adotada – se tratando de vinhos – de contato direto com a Abrabe e a MAPA tem funcionado bem.

Operações Recentes

De acordo com o relatório geral de apreensões da Abrabe, realizado de 2019 a 2022, os estados com maior número de operações contra o descaminho de bebidas alcoólicas são Paraná (208 operações), Rio Grande do Sul (196 operações), Santa Catarina (173 operações) e São Paulo (53 operações).

Em 2023, a Polícia Federal, com apoio do MPF, Polícia Civil, Receita Federal do Brasil, Brigada Militar e SUSEPE, deflagrou em novembro a Operação Afluência, nos municípios gaúchos de Venâncio Aires, Lajeado, Estrela, Cruzeiro do Sul, Aceguá, Bagé, Jaguarão, Pelotas, Morro Redondo, nas cidades paulistas de São Paulo e Tarumã, na cidade do Rio de Janeiro (RJ) e em Belo Horizonte (MG)

De acordo com informações da Superintendência da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, o núcleo central da organização criminosa encontra-se estabelecido na região do Vale do Taquari, possuindo como principal atividade ilícita o descaminho de bebidas destiladas, introduzidos pelas fronteiras com o Uruguai e vinhos, pelas fronteiras com a Argentina. As bebidas transportadas aos depósitos do grupo criminoso eram enviadas para grandes atacados em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. A investigação apurou que foram movimentados R$ 62 milhões com a venda de bebidas alcoólicas ilicitamente introduzidas em território brasileiro.

Para Palhano, quando se fala de vinho, o mais relevante é o descaminho dos rótulos vindos da Argentina. A tendência adotada pelos criminosos é o transporte em quantidades cada vez menores. São encontrados fracionados em automóveis menores e despachados utilizando o serviço de correio, e-commerce, encomenda, ou em ônibus, para que o risco de fiscalização seja diminuído. “É algo em constante mudança. É de se esperar que os criminosos procurem se adaptar, inovem e passem a realizar as atividades ilícitas de formas diferentes. Estamos sempre atentos”, destaca Palhano. 

Em dezembro de 2023, foi deflagrada a operação Rota do Vinho, visando desarticular organização criminosa que importava, revendia, transportava e distribuía vinhos de origem estrangeira, sem controle sanitário e documentação legal de importação. Estão sendo cumpridos 15 mandados de busca e apreensão nas cidades de Porto Vera Cruz, Santo Cristo, Três de Maio e Santa Rosa (RS), Palhoça (SC) e Goiânia (GO). Uma organização criminosa importava vinhos da Argentina pela região de Porto Vera Cruz (RS) e transportava, armazenava e distribuía os produtos para Santa Catarina e Goiás. Os investigados irão responder pelos crimes de contrabando, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Concorrência desleal: o impacto para importadores e produtores brasileiros

A Mistral, uma das maiores importadoras brasileiras, aponta os rótulos DV Catena, Angelica Malbec, Alma Negra e El Enemigo entre os que mais sofrem com o descaminho. “Já tivemos conhecimento de criminosos que compravam por 20% do preço daqui, então eles podiam vender por 50% do nosso custo oficial e mesmo assim ter um lucro muito significativo”, conta Rodrigo Mainardi, gerente de marketing da Mistral. Ele destaca o problema representativo para as marcas e a experiência inadequada de quem consome rótulos por descaminho. As nuances proporcionadas pelo vinho original são perdidas, e podem fazer com que o consumidor final acredite que esse é o padrão do vinho: “mesmo que seja um rótulo original, ele chega aqui com condições muito precárias. Perde-se toda a complexidade. O cliente pensa que está fazendo um bom negócio, mas na verdade não está”, afirma Mainardi.

Heleno Facchin, diretor superintendente da cooperativa vinícola Nova Aliança, lamenta o fato de o consumidor acabar optando por vinhos importados de procedência duvidosa, quando os brasileiros estão em pé de igualdade com os rótulos estrangeiros: “o produto nacional não perde em nada para o produto importado. Estamos adiantados inclusive em algumas questões, nem todo mundo produz tudo. O solo brasileiro é muito rico e cheio de possibilidades”, garante Heleno. “Infelizmente, o que temos no Brasil é uma cultura estabelecida de valorização do que é externo, importado, do estrangeiro”, lamenta.

Os perigos para a saúde do consumidor

O transporte precário, a adulteração do conteúdo dos rótulos e o uso de substâncias tóxicas podem causar danos irreversíveis à saúde e até mesmo provocar a morte de quem os consome. É o que alerta a delegada brasileira da OIV, Fernanda Spinelli.

Fernanda atua também na secretaria da agricultura no laboratório de referência enológica, que executa análises fiscais de vinhos e derivados. “Esses vinhos podem apresentar riscos se forem elaborados utilizando aditivos, coadjuvantes de processo que não são recomendados para consumo humano”, explica a especialista. Ela reforça que existe um parâmetro de controle de quantidade de metanol, álcool altamente tóxico, que necessita ter sua quantidade limitada. “Existem concentrações naturais dele que se formam durante o processo de vinificação”, explica. Entretanto, o excesso de Metanol pode até mesmo matar.

Ela alerta também para as consequências que podem ser trazidas pelo armazenamento indevido: “o vinho é um ser vivo, e, assim como nós, sofre alterações. Não se sabe onde a garrafa ficou, como, por quanto tempo. Reincidência de luz, temperatura, umidade, tudo isso pode afetar um vinho já engarrafado”.

Medidas sendo tomadas

O MAPA intensifica cada vez mais as ações de combate ao descaminho. “Realizamos ações de inteligência e fortalecemos a capacidade de ações e articulação interinstitucional, por meio do Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais, o Vigifronteira”, destaca, Juçara, coordenadora-geral. O programa foi contemplado em 2023 com o Prêmio Nacional de Combate à Pirataria, ofertado pelo Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos Contra a Propriedade Intelectual do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Como forma de facilitar a identificação de vinhos falsificados, a Mistral criou um selo em conjunto com a produtora argentina Catena Zapata. Holográfico e colocado no país de origem, na própria vinícola, antes da importação, ele é mais difícil de ser copiado do que os demais selos. Todos os vinhos argentinos importados pela Mistral possuem esse selo, que já está sendo introduzido também em rótulos de outros países.

Já a Abrabe, além de todo o trabalho que vem sendo realizado, com políticas públicas de conscientização, batalha no Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) para tornar o descaminho um crime hediondo. Além disso, uma das reivindicações da associação é que se tenha uma cobrança de fiscalização maior nas lojas virtuais.

Sobre os marketplaces ou e-commerce, segundo Sérgio Eduardo Busato, Delegado Regional de Polícia Judiciária Substituto na Superintendência Regional da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, as investigações iniciam na Polícia Federal por fontes de informação diversas. a PF busca mapear toda a atividade da organização, desde o ingresso da mercadoria no Brasil, rotas, meio de transporte, depósitos e a forma e o meio de comercialização dos produtos: “as investigações iniciam na Polícia Federal por fontes de informação diversas, como apreensões de outras agências, como a Receita Federal e outras forças policiais, denúncias, entre outras”, esclarece Busato.

Como identificar se um vinho importado é legítimo ou não

A Abrabe orienta para desconfiar sempre de preços muito abaixo da média do mercado, verificar a procedência e uma atenção especial do consumidor ao canal de fornecimento e às características do produto. Para vinhos tintos, por exemplo, desconfie se ele apresentar uma coloração muito clara.

Consuma apenas produtos importados por importadoras registradas no MAPA, o que pode ser identificado no rótulo do produto no momento da compra pelo número Registro MAPA. Os padrões de identidade e qualidade exigidos pelo Brasil podem ser verificados Cartilhão de Bebidas, disponível no site do Governo Federal.

Para denunciar um crime como s citados na matéria ligue ou escreva para (11) 3079-6144 ou denuncie@abrabe.org.br.

Para mandar sugestões de matérias escreva para pauta@brasildevinhos.com.br.

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