Seguindo nosso roteiro do vinho em São Roque (SP), apresentamos três vinícolas com origens e filosofias diferentes – a Casa da Árvore, a Bella Quinta e a RilaVida, – mas antes visitamos a Canguera, vinícola referência e uma das mais visitadas da região, onde fica o único museu do vinho da cidade.

A memória do vinho da região
São Roque é uma cidade cheia de história. E passar alguns dias ali, ouvindo os produtores que moram na região, nascidos ou não no município, é uma imersão no passado das famílias que até hoje dão continuidade a esse legado. Um dos temas recorrentes nas conversas é o trem, que foi o grande responsável pela notoriedade dos vinhos da cidade, pois foi um dos primeiros meios de transporte para a comercialização deles, levando os produtos a serem conhecido no litoral sul de São Paulo.
Bem próximo à linha férrea do trem que em 1952 João Antônio de Camargo, avô de Márcio e Marcos, instalou a vinícola Canguera – nome que homenageia o bairro onde está localizada. “Naquela época”, diz Márcio Aldegheri, “o que pagava a conta de tudo era o vinho de mesa feito com a uva bordô”. O que na região como um todo ainda não é muito diferente hoje, mais de 70 anos depois, diga-se de passagem.

Agora a estrutura da vinícola Canguera está maior, a empresa está mais organizada e com diversos atrativos, mas isso não foi sempre assim: “há cerca de 25 anos apostamos no Enoturismo”, conta Márcio, “quando meu avô iniciou o negócio eram apenas duas portas (imagem acima, as portas eram onde estão as janelas) e uma garagem onde minha mãe criava gatos”, conta, divertido. “Naquela época era tudo diferente, por volta dos anos 1950/1960 nossos pais fechavam as portas na hora do almoço e não abriam à tarde”, relata.
O negócio funcionou deste modo durante muitos anos. Décadas depois, Márcio tem lembranças da juventude: “desde crianças eu e meu irmão ajudávamos nosso avô e nosso pai, principalmente atendendo os turistas, que nas décadas de 1980 e 1990 já vinham para São Roque”, conta, “isso acontecia muito no inverno e no final do ano”, diz.
Por volta dos anos 1990, depois de uma crise no mercado, os irmãos passaram a se envolver mais, percorrendo os mercados das cidades vizinhas de moto, oferecendo seus vinhos para voltar nos finais de semana e realizar as entregas de camionete: “de mercadinho em mercadinho”, recorda Márcio, “e com esse dinheiro íamos a Jundiaí comprar rolhas aglomeradas”.
Foram tempos difíceis.

Então houve o momento que passaram a apostar no turismo: experiências (foto acima), varejo, diversificação de produtos, bistrô, restaurante – e um museu, que faz brilhar os olhos de Márcio (abaixo, junto à enchedora).

No local há garrafas antigas, barril, dorna, peças que foram utilizadas pelo seu avô, que aproveitava a linha férrea instalada em frente para transportar seus produtos. Nas paredes há premiações de festas, engradados de madeira, uma banca rotuladora: é a história que pode ser tocada e vivida. O Museu do Vinho da vinícola Canguera é parada obrigatória para quem visita a cidade.
Ah, sim, mas e os vinhos da Canguera? Os de mesa seguem dominando as vendas, algo em torno de 60% contra 40%. “Entramos no negócio do vinho fino em 2005”, diz Márcio, contando que os vinhos produzidos a partir de Moscato Giallo, Cabernet Sauvignon, Tannat e Merlot vêm prontos da Serra Gaúcha: “só rotulamos aqui”, fala.
Agora com 73 anos de vinícola, a Canguera está em uma nova fase, apresentando seus Vinhos de Inverno, produzidos a partir das variedades Syrah, Cabernet Franc e Sauvignon Blanc – além da Marselan de colheita tradicional, que vem da Campanha Gaúcha e da a IAC Ribas, a ‘queridinnha’ de São Roque : “precisamos evoluir sempre”, diz Márcio, “e queremos isso”, finaliza.

Empolgação com o negócio
Deixamos um local que conta as histórias do passado e nos dirigimos a outro onde a imaginação impera. Sim, porque quando pensamos em uma casa na árvore, pensamos na infância, na criatividade, no imaginário: “eu brinquei em uma casa na árvore, meus filhos também”, diz o sorridente Max Hrobat (foto acima).
Os pais de Max, Herbert e Milka – que no Brasil passou a ser conhecida como Emília – saíram da Eslovênia e vieram para o Brasil nos anos 1960, quando adquiriram um sítio de cerca de 3,5 hectares em uma área de São Roque que na época ainda era mais afastada da cidade. Ali os filhos cresceram rodeados pelo verde, num espaço com pomar, “havia muitas peras”, recorda Max, uvas e a famosa casa na árvore.
Foi por volta dos anos de 2009/2010 que o então engenheiro metalúrgico Max resolveu empreender: “era uma época que o suco de uva estava em alta, tínhamos terreno aqui, a família já plantava alguma coisa e eu pensei: por que não?”
Essa ideia não brotou do nada: a família Max na Europa já tinha o hábito da bebida, apesar de lá ser tradicional o consumo de destilados mais fortes: “a família da minha mãe produzia vinho”, conta.
Há cerca de 30 anos Max passou a botar vinícolas em seus roteiros de viagem: “estive em Mendoza e me encantei na Zuccardi”, lembra. Depois disso participou de uma feira de vinhos na região Sul do Brasil e pode conhecer de perto o negócio: “foi o momento em que comecei a diminuir meu ritmo de trabalho, então posso dizer que esse movimento foi quase natural”.

Max segue a tradição da terra na propriedade que herdou dos pais, mas mudou um pouco o perfil das culturas. Aconselhado por agrônomos e viveiristas deixou de lado o pomar e implantou uma área de 1 hectare com cinco diferentes variedades de uvas de mesa: Niágara branca, Isabel, Lorena, Rúbea e Carmen. Com o passar do tempo o suco perdeu o mercado que tinha e o vinho produzido a partir de uvas finas veio ganhando espaço, isso trouxe novas possibilidades para as variedades Syrah e Sauvignon Blanc que Max traz da propriedade que tem em Andradas (MG), e Tannat e Marselan que vêm da Campanha Gaúcha. E para vinificar as cerca de 10 mil garrafas resultantes de cada safra, Max conta com o apoio de Tiago Duarte (foto abaixo), estudante de enologia no Instituto Federal Campus São Roque.

O entusiasmo de Max pelo novo é perceptível em sua fala e a empolgação que ele passa transparece muito: “há alguns anos plantei vinhedos no Piauí”, conta, “mas o pavão da vizinha matou todos meus 200 pés de Lorena”, relata, divertido. No dia que nos encontramos, em São Roque, Max, que mora em São Paulo, se atrasou um pouco, estava arrumando as coisas antes de seguir viagem, de carro, até o Piauí, em uma viagem de cerca de 2,6 mil quilômetros…na zdravje (saúde, em esloveno), Max!

Vinho e alcachofra
Se tem algo que também identifique São Roque é a alcachofra. Há festa da alcachofra, festival da alcachofra, uma infinidade de pratos preparados com alcachofra e sim, há vinhedos em consórcio com plantio de alcachofra. A RilaVida é uma pequena vinícola que tem também uma história de gerações, que passa pela fundação das adegas Palmeiras, Guarani e Cacique Periquito, antes da criação da RilaVida, hoje na terceira geração da família, tendo à frente Cláudia e seu marido, Dario Moraes – um conhecido produtor de…alcachofra. “Na nossa família tudo começou com o cultivo de uvas e alcachofras pelos nossos antepassados, estas em menor quantidade”, conta Claudia (na foto abaixo com o marido, Dario).

O casal já produz seus vinhos, vinificados na XV de Novembro a partir de uvas adquiridas de produtores parceiros, mas está implantando um vinhedo de Niágara branca e rosada junto a uma das parcelas de alcachofras de Dario.

A RilaVida é um local intimista e acolhedor, uma pequena villa inspirada nas tradições espanholas. A mesa farta, coberta com diversos pratos utilizando alcachofras (foto acima) nas suas mais variadas receitas, é um convite a uma viagem gastronômica, harmonizada com dois produtos típicos da região: o vinho e a alcachofra.

O vinho dos restaurantes estrelados
As cerca de 10 mil garrafas que a Bella Quinta produz a cada safra fazem dela uma das menores vinícolas de São Roque, e a sua filosofia purista, de produzir vinhos com a menor intervenção possível, usando métodos ancestrais como a fermentação em ânforas, a diferencia das demais.
Mas antes disso o vinhateiro ‘quase enólogo’ – está estudando Viticultura e Enologia no IF São Roque – atuou no mercado corporativo usando terno e gravata, até que a vocação familiar falou mais alto: “vem de família, avôs, tios, cresci dentro de uma vinícola, trabalhei com isso desde sempre”, diz Gustavo Camargo Borges, sócio da vinícola ao lado da esposa, Bruna.

A maior parte dos rótulos de Gustavo hoje vem da parceria que tem com o produtor Ivan Tissatto, de Caxias do Sul (RS), desde 2010: “temos uma ideia de apresentar um produto em colab agora em 2026”, antecipa Borges.
O começo dessa trajetória com marca própria foi em 2005, quando o casal assumiu o espaço que foi ocupado pela vinícola Palmares, dentro do complexo do parque Góes. “Constituímos nosso CNPJ e começamos a organizar o espaço, e em 2008 apresentamos nosso primeiro vinho, o Cabernet Sauvignon Reserva”.

Gustavo gosta de salientar o trabalho artesanal, o vinho ‘feito à mão’, e isso fica claro quando fala a respeito do trabalho desenvolvido em ânforas de argila, da mesma forma como eram produzidos os vinhos nos primórdios da humanidade: “buscamos esse método pensando no resgate, na forma mais autêntica da elaboração de vinhos”, sentencia. É na pequena cantina que Gustavo vinifica em ânfora o corte Cabernet Franc com Merlot, de uvas paulistas, de São Roque, de ciclo tradicional: “as pessoas sentem na taça essa originalidade, é um vinho que tem características próprias: a cada ano e a cada safra temos vinhos extremamente diferentes”, diz, “é isso que o consumidor procura, a autenticidade. E nada mais autêntico que um vinho produzido e elaborado pelo método mais ancestral que nós conhecemos”. E esse vinho autêntico e diferenciado pode ser encontrado na carta de diversos restaurantes estrelados, como Dona Onça, Don, Dalva e Dito, Evvai e Rosewood, só para citar alguns.
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O Brasil de Vinhos viajou a São Roque (SP), a convite do Sindusvinho e do Roteiro do Vinho.
Fotos: Brasil de Vinhos | Lucia Porto.
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