“Se quiser, o Brasil pode ser a próxima grande história do vinho”

“Se quiser, o Brasil pode ser a próxima grande história do vinho”

Percorrendo o Linkedin descobrimos Hélder Cunha, enólogo português que publica reflexões interessantes sobre vinho. Um dos textos escritos por ele levantou uma questão: será que o Brasil tem uma Cultura de vinho verdadeiramente sua? E se ainda não tem, porque?

Pois fizemos estas perguntas pro Hélder, que nos respondeu com um artigo cheio de inquietações e possibilidades.

Antes de lermos a resposta, interessante dizer que Hélder já percorreu o mundo trabalhando com vinho: hoje atua em Portugal onde o elabora em sua vinícola, a Casca Wines, mas já produziu em diversas regiões, seja no Napa Valley (EUA) ou Rheingau e Mosel (Alemanha). Além disso, também atua na comunicação do vinho – é autor e protagonista de “Rotas do Vinho”, uma série de TV que mostra Portugal pelo ponto de vista da bebida.

No texto a seguir, Hélder levanta pontos interessantes e deixa perguntas no ar: agora cabe a nós, brasileiros, respondermos…

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Brasil: o país onde a cultura do vinho ainda está por nascer — e isso é uma oportunidade 

Hélder Cunha *

  1. O vinho como cultura, não como produto

O vinho nunca foi apenas uma bebida. É memória, é gesto, é partilha, é a mesa que se prolonga, é o tempo que se estica à volta de um copo. É, antes de tudo, cultura — uma forma de estar e de viver. Em muitas regiões tradicionais, esta cultura está hoje a desaparecer gradualmente, esmagada pelo ritmo moderno, pelos novos hábitos e pela perda de ritualidade. Mas, no Brasil, o fenômeno é outro: não se trata de desaparecer algo que existia, mas de algo que ainda não teve tempo para nascer.

O vinho é admirado, desejado, consumido e celebrado. Mas ainda não está verdadeiramente integrado no quotidiano social do país. Não faz parte do gesto automático, da mesa do domingo, da conversa de final de tarde. Ainda não ocupa o lugar simbólico que poderia — e deveria — ocupar. E é neste ponto que reside a tese central deste artigo: o Brasil não perdeu a cultura do vinho; o Brasil ainda não a construiu. E é precisamente esta ausência que se transforma na maior oportunidade para quem acredita no futuro do vinho na América Latina.

  1. Onde está hoje o Brasil no mundo do vinho? — um retrato claro e sem romantismos

Para compreender o que está por vir, é preciso olhar com lucidez para o que já existe. Os dados oficiais mostram um país de contrastes: um mercado gigantesco, mas ainda incipiente; um consumo que cresce, mas sem consistência cultural; uma produção nacional cada vez mais qualificada, mas ainda tímida na afirmação de identidade. O consumo de vinho aumentou nos últimos anos, estabilizou, e continua muito distante dos países tradicionais. Estamos falando de cerca de dois litros per capita — um número pequeno para um país imenso, jovem e vibrante.

E, no entanto, quando olhamos além da estatística, percebemos algo maior: o vinho no Brasil não está consolidado, mas está disponível para ser moldado. As classes médias urbanas procuram autenticidade, ligação emocional, experiências gastronômicas, histórias reais – o consumidor brasileiro é digital, curioso, aberto a experimentar. E, sobretudo, não está preso a tradições rígidas ou a séculos de ritualização vinícola. O Brasil é, simultaneamente, um mercado gigante e um mercado em formação. E isso é raro. Muito raro.

  1. O problema não é desaparecimento cultural — é falta de ritual

Na Europa, o vinho faz parte do DNA social. No Brasil, não. E isso não é um juízo de valor — é apenas uma observação histórica. O bar brasileiro é da cerveja. O churrasco é da cerveja. O convívio rápido é da cerveja. A praia é da cerveja. E uma cultura enraiza-se através da repetição — através do que se torna normal, cotidiano, familiar.

O vinho no Brasil não é rotina; é exceção. Surge em ocasiões especiais, jantares elaborados, encontros planejados. É tratado como evento, não como gesto. E é justamente esta ausência de ritual que impede a criação de uma cultura vinícola significativa. O Brasil não está perdenro cultura — está perdendo oportunidade de criá-la, porque ainda não transformou o vinho num hábito social natural. E cultura só nasce quando o extraordinário se torna habitual.

  1. Porque ainda não existe uma cultura de vinho no Brasil?

A resposta não está na falta de interesse do consumidor — muito pelo contrário. Está na forma como o vinho lhe foi apresentado. Durante décadas, o vinho chegou ao Brasil embalado em linguagem técnica, distante, elitizada. Falou-se de castas, estágios, barricas, acidez volátil e fermentações espontâneas… quando o consumidor precisava de ouvir histórias, sentir emoções, imaginar momentos. Em resumo: falaram de Química antes de falar de Humanidade.

Além disso, o vinho não passou de pais para filhos. Não existe uma tradição familiar que o normalize. A Gastronomia brasileira — riquíssima e emocional — raramente foi acompanhada por vinho. E os produtores nacionais, muitos deles competentes e apaixonados, ainda não encontraram uma narrativa coerente que una produto, origem, identidade e propósito. O resultado é simples: o consumidor brasileiro não rejeita vinho; ele apenas não recebeu a chave para entrar neste mundo.

  1. O Brasil tem algo único: um público pronto para aprender

E é aqui que a história muda de tom. Ao contrário dos países tradicionais, onde o vinho enfrenta estagnação, saturação e fadiga cultural, o Brasil oferece um terreno fértil. Os estudos de mercado apontam para um crescimento consistente, sobretudo em valor. Há uma geração jovem, urbana, conectada, interessada em Gastronomia, em autenticidade, em experiências. Uma geração que quer aprender, quer participar, quer fazer parte — não de um produto, mas de uma comunidade.

O país tem regiões extraordinárias, como o Vale dos Vinhedos, a Campanha Gaúcha, o Vale do São Francisco e a Serra Catarinense. Regiões que ainda não contaram a sua história para o mundo — e que podem fazê-lo com força, se unirem terroir, identidade e narrativa. O Brasil é, culturalmente, um campo aberto. E quem plantar agora, colhe não um mercado — colhe uma cultura inteira.

  1. Como construir uma Cultura de vinho no Brasil — caminhos concretos

Criar cultura não é uma tarefa técnica — é uma tarefa humana. As pessoas não compram Enologia; compram significado. Não compram castas; compram momentos. Não compram notas de prova; compram promessa de prazer. A pergunta mais importante que um consumidor faz não é “qual é a casta?”, mas sim: “o que vai acontecer se eu comprar este vinho?”

O vinho precisa entrar no quotidiano brasileiro. Precisa estar no almoço de domingo, no churrasco, no petisco, na festa com amigos, na praia — sim, na praia, porque um espumante gelado faz parte da alegria. Precisa também caminhar lado a lado com a Gastronomia nacional, porque nenhum país elevou o vinho sem antes elevar a comida que conta a sua história. Precisa de rituais simples: temperatura certa, copo certo, tempo certo. Rituais criam memória, e memória cria cultura.

E os produtores precisam de trocar tecnicismo por autenticidade. A técnica é importante — mas o consumidor só entra no mundo do vinho se a porta for emocional.

  1. A oportunidade — É a hora do Brasil

Nunca existiu um momento tão favorável para o vinho no Brasil. O mercado cresce, o consumidor transforma-se, a gastronomia vive um renascimento, o digital amplifica comportamentos, e não existe uma tradição pesada a limitar inovação. Enquanto os países históricos lutam para recuperar uma cultura perdida, o Brasil tem a liberdade rara de a criar — do zero, ao seu próprio ritmo, com a sua própria voz, a sua própria maneira.

Criar uma cultura do vinho num país de mais de 200 milhões de pessoas não é só uma oportunidade de mercado — é um momento definidor para quem acredita no poder cultural da Gastronomia e da bebida que a acompanha. E ninguém deve ignorar isto.

  1. Conclusão — o Brasil pode ser a próxima grande história do vinho…se quiser

O Brasil não precisa copiar França, Itália, Espanha ou Portugal. Não precisa imitar tradições que não são suas. Precisa apenas de encontrar a sua verdade, o seu gesto, o seu ritual. Precisa ouvir a sua própria cultura — e deixar que o vinho entre nela com naturalidade, alegria e consciência.

Se o fizer, não constrói apenas vendas. Constrói pertencimento. Constrói identidade. Constrói cultura.

E cultura é o único solo onde o vinho realmente floresce.

*enólogo

 

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