A partir da análise de duas rotas turísticas na Serra Gaúcha e na Campanha, estudo do PPG Agronegócios reflete sobre a gestão das vinícolas, a capacidade absortiva e a sinergia dos roteiros
O território brasileiro é marcado por uma multiculturalidade ocasionada pela presença de diversos povos, tanto nativos quanto vindos de diferentes cantos do mundo. No Rio Grande do Sul, a imigração de italianos no fim do século XIX modificou não só o panorama étnico do estado: é que quando um povo imigra, leva na bagagem, além das lembranças e dos sonhos, a sua cultura, o seu modo de se relacionar com o que a natureza dá e fazer disso o seu ganha pão. Dentro desse contexto, o que era costume na Itália também virou costume no Sul do Brasil. Nos últimos 40 anos, o país viu crescer e se consolidar no estado gaúcho o enoturismo, atividade turística de degustação de vinhos e visitação das vinícolas onde a bebida é produzida, com direito a passeio entre vinhedos e contato com a tradição e a cultura locais.
Como todo mercado, o enoturismo tem suas particularidades. Em sua tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Agronegócios da UFRGS, a administradora Camile Bonotto analisou a capacidade absortiva (CA) e a sinergia de duas rotas turísticas: o Vale dos Vinhedos, situado na região colonial italiana que fica no nordeste do estado, denominada região da uva e do vinho pelo Ministério do Turismo em meados da década de 1990, e a Ferradura dos Vinhedos, localizada em Santana do Livramento (fronteira com o Uruguai), na região da Campanha. A capacidade absortiva se trata da capacidade que a empresa possui de desenvolver rotinas e processos e se relaciona com investimentos direcionados às atividades de pesquisa e desenvolvimento. Já a sinergia, que está diretamente associada à CA, se refere aos atores envolvidos nos processos do enoturismo, como o próprio roteiro, a comunidade, as vinícolas, a tecnologia e a inovação.
Com as implicações da pandemia de coronavírus, diversas atividades econômicas se viram diante da obrigação de cessar ou adaptar suas atividades. Assim foi com o enoturismo — pelo menos durante um tempo. Quando surgiram os primeiros sinais de flexibilização das restrições impostas pela pandemia, atividades a céu aberto se tornaram a primeira opção de quem queria sair do confinamento. Não demorou até que os passeios pelas vinícolas dos roteiros do enoturismo gaúcho entrassem na mira não só dos habitantes locais, mas também dos turistas, o que provocou um aumento do consumo da bebida produzida nas vinícolas. Durante a pandemia, o consumo de vinho no Brasil aumentou em 20%, sendo considerado a “bebida da quarentena”.
Gestão e família
Com uma abordagem quanti-qualitativa e descritiva de casos múltiplos, o estudo de Camile incluiu entrevistas realizadas com gestores e órgãos oficiais, como as Secretarias do Turismo do Vale e da Ferradura dos Vinhedos, mas avançar nessa etapa não foi fácil. “Essa coleta de dados em alguns casos foi muito difícil de conseguir, de agendar com os gestores. Como eles participam de muitas entrevistas, isso acaba dificultando o nosso processo de coleta de dados”, relata a pesquisadora.
A decisão de abordar os processos do enoturismo nessas duas rotas foi estratégica. De um lado, há o Vale dos Vinhedos, com oito vinícolas. Roteiro consolidado há décadas, foi a primeira indicação geográfica reconhecida do Brasil, obtendo sua Indicação de Procedência (IP) pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) em 2002 e, 10 anos depois, sua Denominação de Origem (DO). Do outro lado, a Ferradura dos Vinhedos, com cinco vinícolas, que já possui IP, representa uma parcela menor da produção de vinho no estado, e cujo roteiro também é menos procurado em comparação ao do Vale dos Vinhedos. Apesar de não ser um roteiro consolidado, a Ferradura dos Vinhedos não fica para trás quando se trata de administração.
“Em termos de planejamento e gerenciamento, a gente vê um alinhamento maior nas vinícolas de Santana do Livramento, até porque eu diria que não são vinícolas familiares. São vinícolas maiores cujo gestor já é um terceiro, um funcionário”, diz Camile. De acordo com ela, quando a empresa é comandada por uma família é comum que haja mais informalidade, resultando em aspectos positivos e negativos. “Positivo pela facilidade e negativo pela perda de informações e falta de planejamento estratégico”, o que implica a capacidade absortiva, a inovação, a pesquisa e o desenvolvimento. “E o gestor [familiar] tem muito disso, ‘a última opinião é a minha’, e a gente sabe que isso não pode acontecer”, completa.
“Com a capacidade absortiva é possível melhorar o desempenho da empresa, explorando o conhecimento interno e externo, criando competências para lidar com ambientes em mudança”
Camile Bonotto
Por outro lado, a gestão das vinícolas no Vale dos Vinhedos é dividida igualmente entre homens e mulheres, uma consequência da administração familiar presente na região. “Tu vê uma valorização da mulher na direção, coisa que não se tinha há alguns anos”, comenta a autora.
De geração para geração
Com mestrado em Turismo, Camile sempre quis estudar o enoturismo da Serra gaúcha por uma questão familiar. Marcelino, o seu avô, foi adotado por um casal de emigrantes ainda na Itália, antes de virem para o Brasil, e cujo sustento se baseava no cultivo da uva e na produção de vinho.
Camile nasceu inserida nesse contexto e praticando a cultura local acompanhou a época da safra, do plantio, da colheita de uva e da fabricação de vinho. O resultado dessa criação veio anos depois. Agora, a recém-doutora usa a pesquisa para dar continuidade à contribuição familiar, iniciada quando os primeiros a gerir essa atividade sequer imaginavam o impacto que ela teria na economia da região.
Reprodução de matéria publicada no site da UFRGS, leia a original aqui. Fotografia: Dandy Marchetti, na Estância Paraizo, em Bagé.