O perigo que vem com o vento

O perigo que vem com o vento

Produtores de uva do Rio Grande do Sul estão sofrendo prejuízos incalculáveis em seus vinhedos devido à deriva do 2,4D, aplicado nos campos antes do plantio da soja. O herbicida hormonal comercializado livremente e muito utilizado para eliminar a erva daninha conhecida como buva pode ser transportado pelo vento por até 30 quilômetros – a deriva.

Os danos nas vinhas vêm aumentando a cada safra e ameaçam não apenas a cultura da uva, mas também muitas culturas sensíveis do Estado, principalmente fruticultura. Além disso, gera grande impacto ambiental nos biomas Pampa e Mata Atlântica e a consequente redução da biodiversidade vegetal.

Entendendo o contexto

Devido às condições climáticas de ventos e umidade no Rio Grande do Sul, o 2,4D aplicado nos campos pode ser levado pelo vento por até 30 quilômetros. Relatório da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do RS, detalha que os danos causados pelo uso do herbicida hormonal no Estado não estão restritos a pequenas áreas, ou ainda a uma região específica. Em contato com as videiras, o herbicida diminui o rendimento e a vitalidade da planta, causando retorcimento de galhos e aborto de frutos.

Um estudo sobre os efeitos do 2,4D apresentado pela vinícola Guatambu, de Dom Pedrito (RS), aponta diversos sintomas nas videiras, entre eles a perda de fertilidade. As informações, baseadas em estudos da EMBRAPA, apontam ainda um tempo médio necessário de dois anos para a desintoxicação total da planta.

O documento da Guatambu conclui que a manutenção e crescimento da diversificação da produção vegetal na região da Campanha – como frutíferas, por exemplo – só será possível se o sojicultor passar a utilizar herbicidas alternativos ao 2,4D.

“Calculamos as perdas anuais em cerca de 30% da produção de uvas”, diz Gabriela Pötter, engenheira agrônoma e diretora técnica da Guatambu. “De 2017 até 2024 registramos um prejuízo de mais de R$ 21 milhões”, desabafa. Gabriela relata ainda que em 2020 deixou-se de produzir na Campanha em torno de 780 toneladas de uvas – aproximadamente um milhão de garrafas de vinhos finos. Estas informações foram estimadas a partir de dados coletados pela Associação de Vinhos da Campanha Gaúcha com 42 produtores de uva da metade Sul do Rio Grande.

Mas é importante salientar que os vinhos elaborados com uvas cujos produtores fazem manejo correto nos vinhedos são seguros para o consumo e livre de contaminantes como 2,4D, mesmo que estes tenham sido atingidos pela deriva do herbicida. Artigo científico publicado em Portugal como parte da tese de doutorado de Rafaela Xavier Giacomini, graduada em Viticultura e Enologia, comprova que não há resquícios do produto no vinho final porque o 2,4-D é destruído pelas leveduras durante a fermentação (tabela abaixo).

Os produtores de culturas sensíveis buscaram uma solução consensual de diversas maneiras, seja tentando negociar com entidades representativas, intermediação do Ministério Público ou ações conjuntas com a Secretaria de Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul, além de audiência pública na Assembleia Legislativa e reuniões com o governador Eduardo Leite. Por enquanto os resultados estão sendo nulos.

Em 2020, a Associação dos Vinhos da Campanha Gaúcha, em parceria com a Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã, acionou juridicamente o Estado do Rio Grande do Sul através de uma ação civil pública. A ação solicita a suspensão das aplicações dos herbicidas hormonais com princípio ativo 2,4D no Rio Grande do Sul enquanto não forem tomadas medidas efetivas para evitar a deriva. “Chegamos a receber uma liminar proibindo a utilização do 2,4D, mas o Governo do Rio Grande do Sul recorreu e a liminar foi cassada pelo tribunal”, relata Rosana Wagner, presidente da associação Vinhos da Campanha Gaúcha. A proprietária da vinícola Cordilheira de Sant’Anna, localizada em Santana do Livramento (RS),  afirma que nunca viu uma situação de descaso como essa: “não são apenas os vinhedos que estão a perigo, e sim todas as culturas sensíveis”, alerta.

Carta de Jaguari

Os herbicidas hormonais causam forte impacto ambiental nos biomas Pampa e Mata Atlântica e a consequente redução da biodiversidade vegetal, devido à morte de plantas nativas. Essa foi uma das conclusões relatadas na ‘Carta de Jaguari documento produzido em reunião realizada no dia 6 de dezembro de 2024 em Jaguari (RS). O encontro reuniu entidades dos setores representantes de diversas culturas atingidas, instituições científicas e participantes de órgãos oficiais.

Valtencir Gama, advogado que faz parte da Academia Brasileira de Direito do Vinho, tem algumas ações individuais de viticultores em trâmite discutindo o prejuízo sobre os vinhedos que foram atingidos. Gama, que também é produtor de vinhos com a Altos Paraíso, em Camaquã (RS), explica que o problema é a dificuldade de prova em função do largo alcance e da deriva do produto. “Alguns estudos que foram feitos mostram que o 2,4D chegou a atingir 30 quilômetros de distância do local da aplicação”, detalha o advogado. “Com uma deriva tão grande, se torna difícil de judicialmente demonstrar qual foi a pessoa que aplicou o produto. E essa questão do nexo de causalidade é o elemento mais delicado na questão da responsabilidade civil”, lamenta.

Mas há outra opção para o cultivo da soja sem a utilização do 2,4D?

Há outras formas de cultivar a soja além da utilização do herbicida hormonal. É possível, por exemplo, ser utilizado outro sistema de manejo de solo e até mesmo outros herbicidas. Informações como estas e outras podem ser obtidas junto à EMBRAPA, que desde 2012 reúne protocolos de técnicas de manejo de plantas daninhas – em especial a buva – com alternativas de produtos e herbicidas de diferentes mecanismos de ação.

A Guatambu, por exemplo, tem o cultivo de soja como negócio há décadas. Gabriela explica que há oito anos converteram a agricultura de plantio direto para regenerativa, com o uso mínimo de herbicidas, que foram reduzidos em mais de 60%, sem logicamente o uso do 2,4D:  “para isso fizemos a regeneração do solo, ou seja, buscamos retornar ao equilíbrio de como era antes de iniciar qualquer cultivo, um trabalho feito através da aplicação de micro e macro-organismos na lavoura”, explica a engenheira agrônoma. “A aplicação é tanto no solo quanto nas folhas do cultivo. O sistema todo fica mais protegido e, quando houver uma tentativa de ataque de uma praga de um outro fungo, eles vão ocasionar uma competição natural, sem precisar utilizar defensivos químicos”, explica.

É a sábia natureza reagindo por si só.

Fotos: Brasil de Vinhos

O Brasil de Vinhos viajou para a Campanha Gaúcha a convite da ConceitoCom Brasil.

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