Latada ou Espaldeira: tradição, qualidade e mercado

Latada ou Espaldeira: tradição, qualidade e mercado

(vinícola UVVA. Foto: Rafael Martins)

Para que o vinho chegue ao consumidor final com qualidade há uma série de fatores que precisam ser considerados pelos vitivinicultores. Condições como clima e solo, disponibilidade de mão de obra, insumos, custos, práticas de manejo no vinhedo e na área de cultivo são algumas das variáveis que podem determinar a qualidade – ou falta dela – em um rótulo. Quando falamos de tudo isso, precisamos lembrar da importância do sistema de condução de videiras, afinal, uma vez definido isso, são necessários cuidados e estratégias específicas para cada tipo. Seja a opção do produtor pelo modelo de Espaldeira, Latada, ou outro sistema, é isso que define como será o espaçamento entre as parreiras, a organização espacial das brotações, folhas e cachos e sua sustentação.

Quando falamos dos diferentes tipos de condução de videira, estamos falando de algo muito mais complexo do que a existência de um método mais correto do que o outro. De acordo com Henrique Pessoa dos Santos, pesquisador em Fisiologia de Produção e chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, foram desenvolvidos e ajustados até o momento, nas várias regiões vitivinícolas do mundo, mais de 250 tipos de sistemas de condução da videira.

Latada x Espaldeira

Entre os sistemas, destacam-se Latada e Espaldeira (na foto acima, ambos os sistemas, na vinícola Peruzzo, em Bagé. À esquerda, Latada e na maior parte, Espaldeira), como mostra o manual de implantação de vinhedos, feito por Alberto Miele e Francisco Mandelli, disponível no site da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O Latada é muito utilizado no Rio Grande do Sul, que concentra 90% da produção de vinhos no Brasil, de acordo com a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Agronegócio (Seapa). Esse sistema traz para o fruto uma proteção foliar do sol, uma espécie de telhado de folhas. Os cachos ficam encobertos e as videiras são plantadas em sentido horizontal. Já o sistema de Espaldeira, que representa a maior área plantada do mundo, traz as videiras estabelecidas verticalmente, em fileiras paralelas, deixando os cachos expostos ao sol, o que possibilita um aumento no teor de açúcar da uva.

Henrique Pessoa dos Santos, pesquisador em Fisiologia de Produção e chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, o sistema de condução não deve ser considerado em primeiro plano: “a simples escolha de um tipo de condução não garante que as videiras possam atingir o potencial enológico ideal no vinhedo para a elaboração de determinados tipos de vinhos”, esclarece o especialista. Segundo ele, esse potencial enológico das uvas de um determinado local depende muito do ajuste de manejo para garantir um equilíbrio natural das plantas em crescimento vegetativo e produção, em conjunto com a promoção de microclimas (temperatura, radiação solar e umidade) favoráveis aos cachos.

A experiência traz os melhores resultados

A vinícola Peruzzo, localizada em Bagé, na Campanha Gaúcha, começou com um vinhedo no sistema de Latada, voltado para consumo próprio e para venda em mercado do mesmo grupo da família. Foram feitos testes e constatado, na prática, que não seria rentável um vinhedo com esse sistema de condução na região: “seria um desperdício não plantar em espaldeira. Como se fala por aqui, seria gastar bala em chimango”, brinca Daniel de Carvalho, enólogo da Peruzzo. Isso porque a Campanha Gaúcha conta com uma iluminação solar extensa e privilegiada, base para o que um sistema em Espaldeira (foto acima) procura.

Carvalho explica que se o sol não bate tanto na uva, como acontece no sistema de Latada, não há uma incidência solar alta na fruta, tornando inviável aumentar o teor de açúcar nela: “é por isso que vinhos de mesa, que vem de uvas como Isabel, Bordô e Niágara, têm baixo teor alcoólico, não é possível aumentá-lo. Procuramos uma uva com maior teor de açúcar, queremos que bata muito mais sol nela”, esclarece. Para o chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, diversos benefícios diretos para a uva são proporcionados com a exposição solar, como um maior acúmulo de sólidos solúveis totais (grau Brix), flavonoides, antocianinas (cor, em uvas tintas) e monoterpenos (aroma, em uvas brancas).

Quantidade e qualidade

Priorizando a qualidade das uvas em busca de rótulos que possam se destacar em degustações às cegas, a Peruzzo cultiva videiras que produzem no máximo 8 toneladas por hectare em Espaldeira (foto acima), com algumas castas rendendo até cerca 4 toneladas na colheita. Isso acontece, segundo Carvalho, porque quanto mais é retirado da videira, mais uva se produz, mas a qualidade é prejudicada. Entretanto, é preciso atentar para o retorno financeiro do negócio: “Não possuímos vinho de entrada. Procuramos qualidade, fazendo com que a uva fique mais concentrada, com mais aroma, mas tentamos não diminuir muito este número, porque precisamos também ser rentáveis”, explica o enólogo.

Com o mesmo foco foi concebida a vinícola UVVA localizada na Chapada Diamantina: “não existe o vinho perfeito, passamos a vida em busca, mas pensando em qualidade o sistema que definimos é o de Espaldeira Simples, usado no mundo inteiro”, projeta o enólogo Marcelo Petroli, destacando a capacidade de controle da produção das uvas que o método proporciona. Com volume de produção de 5 a 6 toneladas por hectare, considerado por ele o ideal para o sistema de Espaldeira Simples poder trabalhar, Petroli destaca: “existe uma relação de metro quadrado de massa foliar exposta que ele possibilita. É uma parede vertical de folhas, por isso conseguimos regular essa produtividade com a poda”, esclarece. Outra grande vantagem lembrada por ele é a mecanização facilitada pela base do sistema em fileiras, uma composição que facilita a desfolha. A exposição solar, a ventilação em épocas de chuva e a bela paisagem também são grandes pontos positivos para Petroli: “Temos nosso vinhedo bem na frente da vinícola. A beleza da Espaldeira é muito importante para compor um projeto”, explica.

Petroli lembra ainda que, quando se opta pelo sistema de Espaldeira (foto acima), é preciso atentar para a posição do sol. Sobre isso, o especialista da Embrapa explica: “quando o relevo permitir, a orientação norte-sul tende a ser a mais favorável para a qualidade enológica da uva em sistema de condução vertical, como Espaldeira, pois proporciona uma maior exposição solar de ambas as faces das fileiras e nos horários que as temperaturas são mais amenas. Por outro lado, se o local só permitir orientações que tendem à condição leste-oeste, os cachos localizados na face sul das espaldeiras irão estar sempre sombreados e os cachos da face norte ficarão com excesso de exposição solar, o que representa restrições microclimáticas para atingir a plena maturação e o máximo potencial enológico da uva.”

Uma história contada é muito diferente de uma história vivida

A Vinhos Foresti, vinícola familiar situada em Pinto Bandeira, Rio Grande do Sul, já está na sua quarta geração e mantém viva a história com origem italiana de Alfredo, bisavô de Alana Foresti, enóloga que fez parte da modernização do local e estabeleceu, junto da família, novas práticas visando o futuro. “Quem começou tudo foi meu bisavô. Comprou as terras, que não eram nada. Na época, talhava as pedras à mão, que encontrou em uma pedreira da propriedade. Minha bisavó as trazia com uma mula para onde fosse necessário e foi assim que o vinhedo foi estruturado e a casa construída, já com a ideia de produzir vinhos no porão”, conta Alana. Na época, a maior parte do que era produzido era para consumo próprio e o restante ia para venda, para vizinhos e conhecidos. O bastão passou de bisavô para avô, de avô para pai e em 2005 foi iniciado o processo para agregar tecnologia aos vinhedos e produção, com máquinas automáticas e tanques. Hoje Alana divide todos cuidados com a mãe, Lenir, e o pai, Vanius – que trabalham mais nos vinhedos – e fica responsável pelos vinhos.

A Foresti mantém a mesma estrutura, Latada (foto acima), estabelecida pelo seu fundador. Isso acontece por dois motivos, elencados pela Alana: pela cultura histórica da propriedade e da região e pelo grande volume de produção. “Hoje a venda das nossas uvas para grandes vinícolas ainda é o principal sustento da família. Como a Latada proporciona uma maior quantidade por hectare, faz mais sentido para nós”, pontua a enóloga. Numa safra boa, a Foresti chega a produzir 180 toneladas, utilizando em torno de 30 a 40 toneladas para vinhos próprios e o restante para venda. “Podemos selecionar os melhores cachos para a vinícola e conseguimos uma maior quantidade para comercializar, o que é necessário visto que a venda de uva hoje para a indústria não tem um valor agregado tão alto”, explica Alana.

A enóloga destaca que no sistema de Espaldeira, é necessário muito cuidado com o em safras mais quentes, pela alta incidência do sol, sendo na Latada o contrário devido a proteção foliar. O método de Latada também traz peculiaridades. Para uvas de mesa, como a Isabel, a Carmen e a Niagara, por exemplo, a Foresti trabalha com um modelo mais fechado, focado em vendas, que cobre todo o parreiral de folhas, visando uma quantidade maior de frutos. Já nas uvas viníferas, como na Peverella, um sistema mais aberto é utilizado: “deixamos uma faixa entre as fileiras na parte superior, de entrada do sol. Limitamos o crescimento, por mais que ela seja Latada não deixamos cobrir tudo. É uma Latada com um pouco mais de entrada do sol no cacho”, explica.

Com muita paixão pelo trabalho, Alana (foto acima) diz que pretende ter espaldeira no futuro para produção de espumantes. Ela acredita que o Latada é um cultivo que aos poucos vai se perder, mas que as pessoas precisam conhecê-lo porque representa a história da vitivinicultura da Serra Gaúcha. “Enquanto eu viver, pelo menos um pedaço de Latada sempre vai ter por aqui. Não podemos deixar de ter apenas porque todos dizem que a Espaldeira é melhor. Precisamos mostrar para as pessoas, que elas vejam com os próprios olhos, encostem, vejam que a história é real. Porque uma história contada é muito diferente de uma história vivida”.

É também pela tradição que Santa Catarina possui inúmeros vinhedos em Latada. É o que conta Edgar Alberto Favarin, engenheiro agrônomo que vive o mercado há 17 anos e hoje atende 30 produtores pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR). “Hoje, os parreirais que atendo já vinham trabalhando, em sua maior parte, com Bordô e Isabel. Todos os mais antigos já são de segunda, terceira geração, e optam por continuar com essas variedades que fazem mais sentido em Latada”, explica o agrônomo.  De acordo com ele, o foco no estado catarinense ainda é a produção de sucos: “a principal vantagem da Latada em relação a Espaldeira é o volume. Com o valor agregado que os produtores recebem, não compensa manter uvas para suco em um sistema de Espaldeira. Hoje, algumas vinícolas que meus produtores entregam as uvas fazem vinhos de mesa, mas por aqui a maioria permanece sendo suco”, explica.

Favarin também destaca o potencial da região para uvas viníferas, devido a altitude. Para ele, há espaço para exploração, sendo que alguns produtores já estão montando uma coleção de variedades de uvas viníferas, querendo implantar o sistema de Espaldeira. “Acredito que vai haver um crescimento na Espaldeira, porque o vinho vai criando raízes na região. Agora teremos o lançamento de uvas viníferas resistentes a míldio e alguns produtores já estão partindo para esse plantio. 

Não é sobre um sistema ou outro

Seja Latada, seja Espaldeira ou seja alguns dos cerca de 250 registrados, são sistemas que apresentam variações na sustentação da vegetação (ramos e folhas), como vertical ascendente (Espaldeira ou Vertical Shoot Positioned – VSP, em inglês), vertical descendente (Geneva ou Double Curtain – GDC, em inglês), inclinado (Y, Lira) (foto acima), horizontal (Latada ou Pérgola) ou até mesmo sem nenhum tipo de sustentação, como o sistema de condução Gobelet. Para o especialista da Embrapa, a interação da tríplice planta-clima-solo determina a qualidade enológica das uvas e é preciso considerar a realidade de mercado e a viabilidade econômica de todo sistema.

(Fotos: Uvva – ©Rafael MartinsPeruzzo – Daniel de Carvalho, Foresti – Brasil de Vinhos, Sistema Y – Henrique Pessoa dos Santos)

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