(Moradores de Canoas aguardam resgate em área alagada. foto Amanda Perobelli/Reuters para bbc.com)
Não estamos preparados para o pior, mas precisamos
Por Luiz Gustavo Lovato *
No dia 29 de abril de 2024 uma barragem rompeu em Mai Mahiu, no Quênia. Pelo menos 52 pessoas morreram. As chuvas torrenciais que atingem o país desde março já deixaram ao menos 210 mortos e 165 mil pessoas desalojadas. No mesmo mês de abril, imagens insólitas de carros boiando em Dubai esculhambaram qualquer percepção de risco climático. A referência costumeiramente árida é rasurada por uma inundação de água barrenta que faria qualquer um pensar que aquilo é parte de algum filme hollywoodiano.
No mesmo dia 29 de abril de 2024, as chuvas que já atingiam o Rio Grande do Sul desde o dia 27 se intensificaram. Segundo dados do Inmet, a precipitação acumulada em uma semana superou em pelo menos duas vezes a média esperada para o mês de abril inteiro em boa parte do estado, principalmente na Região Central, na Serra Gaúcha, no Vale do Taquari e na Região Metropolitana de Porto Alegre. Saturado pela quantidade de água, o solo de diversas encostas cedeu. A água que não infiltrou foi impiedosamente carregada pelos rios, que com uma força descomunal submergiram cidades e ceifaram vidas. Até o momento em que este texto é escrito, 95 mortes haviam sido confirmadas, 160 mil pessoas estavam desalojadas e 1 milhão 450 mil e 78 pessoas afetadas de alguma forma por esse desastre que tomou proporções humanitárias, e que foi desencadeado por uma sequência de eventos extremos de chuva. Em menos de um ano, essa é a terceira e também a mais grave ocorrência de temporais com alto potencial destrutivo no Rio Grande do Sul.
As demonstrações de solidariedade são emocionantes, proporcionam a ilusão gregária de que enfim somos todos um, reagindo às perturbações exteriores como um organismo reage quando combate células malignas. Em várias localidades gaúchas, as cenas de correntes humanas puxando embarcações são um alento. Outras de resgates de pessoas e animais são comoventes. Por outro lado, há aqueles que relutam em deixar seus pertences por medo de saques. Infelizmente, o cenário de guerra gerado pelas chuvas, e agravado por décadas de negligência em políticas de ordenamento territorial, faz também emergir a mais repugnante face da humanidade. Como em 2005, quando o furacão Katrina dizimou Nova Orleans, o “modo de sobrevivência” da população remanescente parece ter gerado uma sensação de “terra sem lei”, desvelando uma série de crimes de abuso sexual ocorridos nos dias que se seguiram à situação calamitosa. No documentário Cooked, que retrata a onda de calor que matou 739 habitantes de Chicago no ano de 1995, há relatos de pessoas que assumiram o risco de morrer sufocadas, e ainda assim não abriram suas janelas por medo de roubos e assaltos. A ordem derradeira é sempre a de sair de casa e procurar abrigo. Mas evacuar para onde? E depois, retornar para o quê?
Pode parecer óbvio se assumirmos uma lógica de ação-reação, mas pensemos: por que a nossa capacidade de resposta a situações catastróficas é somente testada depois que algo acontece? Por que ainda não estamos preparados para conviver com a probabilidade, mesmo que remota, de que o lar em que vivemos, as relações de afeto que cultivamos e o lugar que conhecemos podem ser destruídos repentinamente por um fenômeno desprovido de intenção? A quem culpar? Como retomar os mesmos trajetos depois de tamanho baque?
Parte das respostas passa pelo estabelecimento, desde já, de uma cultura da prevenção. E isso não depende somente do nosso senso pessoal de ajuda ao próximo. O Marco de Sendai, adotado em 2015 na Terceira Conferência Mundial sobre a Redução do Risco de Desastres, reitera o compromisso das nações signatárias não só com a redução dos riscos, mas também com o aumento da resiliência a desastres. Esse documento é a reafirmação dos compromissos traçados em 2005 no Marco de Hyogo, adotado um ano após o tsunami devastador que atingiu 14 países na costa do Oceano Índico. Nesse meio tempo, uma sequência de desastres de origem natural e tecnológica causou o que vimos em Fukushima em 2011. Também em 2011, entre os dias 11 e 12 de janeiro, chuvas intensas atingiram a Região Serrana do Rio de Janeiro, causando 947 mortes e deixando 50 mil desabrigados. E foi somente após esse megadesastre que se promulgou a Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, no Brasil. O texto institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e a criação de um sistema de informações e monitoramento de desastres. Em 2013 o governo brasileiro cria o Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). É também muito recente, de 12 de dezembro de 2023, a Lei nº 14.750, que visa aprimorar os instrumentos de prevenção, planos de contingência, resposta e recuperação de desastres. No ínterim da criação de instrumentos e diretrizes de organização de um sistema de proteção, houve Petrópolis/RJ (em fevereiro de 2022), houve Recife/PE (em maio de 2022) e São Sebastião/SP (em fevereiro de 2023). Isso para ficar somente nos eventos de origem hidro-geo-meteorológica.
Apesar de tardias, as políticas, os planos e programas, os compromissos institucionais e as discussões estratégicas já existem no Brasil. No entanto, ainda parecem distantes dos objetivos inicialmente traçados. Estabelecer um sistema de alertas e um plano de redução de riscos eficientes passa não só pela intenção de reduzir danos, mas sobretudo pela vontade de quem faz a política em direcionar e aplicar recursos financeiros vultuosos na realização de ações que nos preparem física e psicologicamente para algo que, esperamos, nunca aconteça. Que internalizemos desde muito pequenos a percepção de que habitamos um planeta em que coisas lindíssimas e também horríveis podem acontecer. Que recebamos periodicamente, e com clareza, instruções sobre o que fazer, a quem recorrer, e como buscar recursos para a recuperação de atividades cotidianas e econômicas.
Do Japão ao Quênia, e chegando ao sul do Brasil, os episódios se repetem. E assim como contratar um seguro, investir na redução de riscos de desastres não elimina o evento causador do sinistro, o que isso faz é aumentar a capacidade de resposta e recuperação. E em caso de desastres como esse que observamos estarrecidos, isso significa salvar vidas. Como pressupõe a teoria da resiliência socioecológica, nunca retornamos para o mesmo estado após uma perturbação. Traumas são gerados, laços são rompidos, esforços são perdidos. E como em um ciclo adaptativo, precisamos absorver esses impactos e aprender com as feridas que cicatrizam e deixam marcas, para que na próxima vez, e haverá uma próxima vez, estejamos mais fortes do que antes para enfrentar o que vier.
Esse ciclo é sistêmico, e somos parte dele. E esse sistema é operado sob assimetrias de poder. Por isso cobre! Reúna vozes, e cobre. Cobre os vereadores e prefeito do seu município, deputados e governador do seu estado, o presidente da república e seus ministros. Peça informações sobre o zoneamento de áreas de risco e monitoramento de ameaças recorrentes e futuras, fique atento e exija um orçamento decente para a Defesa Civil da sua localidade, requisite no seu banco informações sobre microcrédito e programas financeiros para recuperação em casos emergenciais, reitere a relevância da inclusão da educação para desastres no currículo escolar. Só assim começaremos a estabelecer uma cultura/consciência de prevenção e estaremos minimamente preparados para o pior, e ainda torcendo para que isso nunca aconteça.
* gaúcho morando em Campinas, sócio-fundador do Brasil de Vinhos, enólogo e doutorando em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Pesquisas Ambientais da Unicamp. Estuda riscos climáticos, gestão de recursos hídricos e adaptação agrícola às mudanças climáticas.