O que são os vinhos naturais, seus tipos e paixões envolvidas
Os vinhos não industriais – ou carinhosamente chamados de ‘naturebas’ – causam polêmica entre produtores e consumidores por suas controvérsias entre regulamentações, tipos e propostas. Sejam eles naturais, artesanais, orgânicos, biodinâmicos ou veganos, há uma dificuldade para nomeá-los e rotulá-los. Nem os próprios produtores conseguem chegar a um acordo. É o que conta Lis Cereja, referência dos vinhos naturebas no Brasil, em seu blog: “Tem biodinâmico que critica natural, tem natural que critica biodinâmico, têm orgânico que não tem selo, tem natural que adiciona um pouco de sulfito, tem natural que odeia sulfito, tem sustentável que é mais orgânico do que o orgânico com selo e por aí vai”, explica a sommelière, que é especialista no assunto. Para ela, o mais importante para o consumidor é conhecer o produto para encontrar um rótulo que reflita seus ideais de consumo e de vida.
Incentivo aos naturebas e crescimento no Brasil
É justamente para dar espaço para esses ideais que Lis Cereja dedica sua vida. Segundo ela, existiam no máximo quatro produtores de vinhos naturais no Brasil em 2008, quando concebeu e inaugurou o primeiro restaurante e bar de vinhos a trabalhar com vinhos naturais no Brasil e na América Latina: a Enoteca Saint VinSaint. Hoje já são mais de 60 projetos voltados para a produção desses rótulos. É dela também a criação da Feira Naturebas, pensada para dar espaço a produtores, importadores e consumidores que desejam falar sobre o assunto, conhecer, degustar e comprar rótulos neste estilo. Criada em 2013, a Naturebas é um espaço livre para as pessoas exporem seus produtos, vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos, não só do Brasil, mas do mundo inteiro. Hoje, a Feira Naturebas já é a maior da América Latina relacionado ao tema. Sem fins lucrativos, o evento anual utiliza todo o dinheiro dos ingressos para a estrutura: “Acredito que muitos produtores desde o início da Enoteca e da Feira Naturebas, também acabou crescendo junto com a gente”, conta Lis. “É muito bonito ver o crescimento desse mercado e temos orgulho de participar dessa história”, complementa.
Mas afinal, quais as diferenças entre vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais? E outra pergunta: não é tudo vegano?
Em um mercado de nicho com definições específicas para cada tipo de vinho, como identificar a procedência dos rótulos e ter certeza de que cada bebida é autêntica em sua proposta? Deise Pelicioli (foto acima, arquivo pessoal Deise Pelicioli), consultora biodinâmica internacional pela Biodynamic Federation Demeter, aponta a necessidade da definição de normas: “lamentavelmente, por falta de uma regulamentação, acaba havendo uma confusão, que reverbera nos consumidores”. Criadora do portal “Clube da Vinha“, dedicado à vitivinicultura biodinâmica, Deise assessora projetos que queiram se adequar às regras da certificação e conversão de vinhedos convencionais para orgânicos e biodinâmicos. Ela tem como uma de suas metas ajudar a conceitualizar termos sobre esse universo e nos ajuda na compreensão de alguns conceitos.
Vinhos Orgânicos
Regulamentados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), são aqueles produzidos a partir de uvas cultivadas com manejo orgânico, sem a utilização de pesticidas sintéticos, herbicidas ou fertilizantes químicos. Para Deise, embora a Anvisa autorize a utilização de insumos químicos de média periculosidade, é esperado, pelo conceito, que os produtores utilizem métodos de controle de pragas e doenças que sejam naturais ou orgânicos. Não permitem a adição de aditivos ou conservantes sintéticos durante o processo de vinificação e possuem as doses de anidrido sulfuroso reduzidas. A sommelière Maria Emília Atallah, que trabalha na importadora de la Croix (vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais), lembra que os vinhos orgânicos não necessariamente são de baixa intervenção: “No Brasil, a legislação é muito ampla”, explica a especialista. “Você tem uma série de insumos enológicos que podem ou não ser de origem orgânica. Dessa forma, é possível manipular o vinho e mascará-lo. Esses vinhos podem vir tanto de uma vinícola gigantesca, que é orgânica, ou de uma vinícola pequena, artesanal”, conta.
De Cezaro, Merlot, com uvas e vinificação em Farroupilha (RS)
Um exemplo de vinho orgânico é o Merlot da vinícola De Cezaro, produzido a partir de fermentação natural espontânea. É feito com uvas produzidas sem a utilização de agrotóxicos e defensivos agrícolas convencionais. “É um vinho tinto seco com coloração rubi, reflexos vermelhos, boa intensidade, bem encorpado, devido a sua fermentação e maceração longa de em torno de 10 dias em casca”, conta Daniel Antônio de Cezaro, sócio da Vinícola De Cezaro.
Vinhos Biodinâmicos
Produzidos a partir da agricultura orgânica que leva em consideração fatores cósmicos e holísticos. Os viticultores que utilizam este método trabalham a partir das concepções de Rudolf Steiner, criador da antroposofia e da agricultura biodinâmica. Observar o crescimento da planta e o que ela está pedindo em cada momento faz parte da rotina do produtor desse tipo de vinho: “Não é uma receita pronta. Você vai observando, e cria uma proximidade com a natureza através dos sentidos. Tem a ver com as fases da lua”, explica Maria Emília. Já Deise diz que é uma forma de cultivo mais rigorosa, que utiliza preparados biodinâmicos, feitos a partir de ervas medicinais, para fortalecer o solo e as plantas. A principal certificação para vinhos biodinâmicos é a Demeter, creditada pelo Instituto Biodinâmico (IBD), auditada, e a Associação Biodinâmica ABD e ABDSUL, participativa. Entretanto, para chegar nessa etapa, é necessário passar pela certificação orgânica regulamentada pelo MAPA. Deise reforça que a utilização de produtos químicos nas uvas nesse tipo de vinho é proibida: “As uvas não podem receber nenhum tipo de produto químico”.
Bruxaria, Tannat, Nebbiolo e Alvarinho, com uvas e vinificação em Viamão (RS)
Produzido com leveduras selvagens e feito sem correção nem filtragem, o rótulo Bruxaria, da vinícola Pianegonda, de Viamão (RS), é um exemplo de vinho biodinâmico. Fermentado com as variedades de uvas tintas Tannat e Nebbiolo e a uva branca Alvarinho, possui teor alcoólico de 13,2%. Gabriel Pianegonda, vinhateiro e sócio proprietário, conta o processo que durou quase 3 semanas: “Iniciou com a colheita da variedade Alvarinho, e foi feita uma fermentação com as cascas. Logo após colhemos Tannat e Nebbiolo. Com uma prensagem após o desengace adicionamos junto na fermentação da Alvarinho.”
Vinhos Naturais
Não possuem uma regulamentação específica e o termo geralmente resulta em bastante confusão. Deise explica que os naturais estão mais focados no estilo de vinificação e muitas vezes os produtores usam uvas convencionais, algumas orgânicas ou biodinâmicas. O vinho pode ser considerado natural mesmo com uvas convencionais: “Por isso gera confusão. Se pensarmos no termo natural, que busca mínima intervenção química na vinificação, me parece incoerente usar uma uva convencional, cheia de veneno, na elaboração deste vinho. Por lógica e coerência as uvas deveriam ser no mínimo orgânicas. No final, vai do bom senso de cada produtor.”
Poeira, Cabernet Franc, com uvas de Monte Belo do Sul, vinificado em Taquara (RS)
Produzido pela Vinhos da Rua do Urtigão, Poeira, um varietal de Cabernet Franc, é o rótulo escolhido por Rubem Kunz, proprietário da vinícola, para contar sobre o seu trabalho com vinhos naturais. Situada em Taquara (RS), a vinícola é a única vinícola brasileira a ser listada no site Raw Wine – a mais relevante comunidade do mundo de produtores de vinhos orgânicos, biodinâmicos, naturais e de baixa intervenção. “Escolhi esse caminho de vinhos naturais porque acho que são os vinhos que têm a maior tipicidade, eles são os que melhor representam o terroir”, conta Kunz. O rótulo Poeira, tradicional da vinícola desde 2018, esteve presente na Revista Gula, em 2021, com pontuação 93, a maior da edição. “É um vinho de vinificação natural, como todos os outros e não recebe nenhum aditivo enológico, não sofre correções e é fermentado espontaneamente, pelas leveduras que vem do parreiral. Não colocamos leveduras selecionadas”, diz. Ö Poeira me fascina pela complexidade aromática que tem”, compartilha Kunz.
Vinhos Veganos
“Não utilizam quaisquer produtos de origem animal em seu processo de produção. Não usam claras de ovos ou colas de peixe, comumente usadas para clarificar os vinhos. Podem ser elaborados com uvas convencionais, orgânicas e biodinâmicas. O importante do selo vegano é não conter produtos de origem animal no processo. Algumas pessoas inclusive não querem uvas biodinâmicas, por causa do uso de produtos de origem animal para elaboração dos preparados. Embora os preparados sejam usados na viticultura e não na vinificação, muitos preferem não usar uvas biodinâmicas”, explica Deise.
Miolo Wild, Gamay, uvas e vinificação em Candiota (RS), Campanha Meridional
Com produção próxima a 12 milhões de garrafas por ano, a Miolo mostra que é possível manter o veganismo na vinificação em larga escala: “Todos os nossos rótulos são veganos. Não utilizamos clarificantes de origem animal nos processos”, diz Gilberto Simonaggio, enólogo responsável. Ele utiliza como exemplo o Miolo Wild Gamay, primeiro vinho tinto lançado nesta safra, premiado no Concurso Internacional do Gamay, na França, na região de origem da variedade: “ele é elaborado com baixa intervenção, não utilizamos leveduras selecionadas, mas sim as da própria uva”, explica Simonaggio, que complementa: “e não utilizamos sulfitos”.
O natural envolve paixões
Maria Emilia Atallah (foto acima, por Paolo Giorlando), sommelière com experiência de quase duas décadas na área da Gastronomia, despertou sua paixão pelos vinhos influenciada pela cultura francesa. E foi na França onde realizou sua formação pelo Institut Paul Bocuse, além de trabalhar no estrelado Les Jardins des Sens. Hoje, em Monte Belo do Sul, na Serra Gaúcha, dedica-se ao trabalho como responsável pelo conteúdo de marketing, clube de vinhos, eventos e degustações na importadora de la Croix, cargo que entrelaça seus conhecimentos e paixões: “quando comecei a estudar Enologia, me aproximei do universo da Gastronomia, sabores e aromas. Trabalhando com cozinha e jantares personalizados, sempre tentei buscar produtos mais artesanais e fui para o mundo do vinho. Viajei sozinha para o Chile, Argentina e Espanha, sempre procurando produtores orgânicos, mesmo sem saber muito sobre isso na época”, conta a sommelière.
Foi também de uma paixão, que surgiu a de la Croix, que importa vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais: o francês Geoffroy de la Croix se apaixonou por uma baiana, mudou-se para o Brasil e passou a trazer para cá rótulos de pequenos e autênticos produtores das mais diversas e inusitadas regiões da França. “Geoffroy vem de uma família com tradição de 200 anos na Borgonha, de uma vinícola que produz vinhos biodinâmicos”, relata. O empresário enxergou a oportunidade em 2005, quando ainda nem mesmo se sabia no Brasil o que eram vinhos biodinâmicos.
Em 2005 surgiu a Bella Quinta Vinhos Finos, em São Roque (SP). Gustavo de Camargo Borges, sócio-proprietário da vinícola junto de sua esposa Bruna Reviglio de Goes (foto acima, arquivo pessoal Gustavo de Camargo Borges), é apaixonado por desafios. O trabalho de Gustavo é focado na agricultura saudável e de mínima intervenção, o que para ele demonstra autenticidade do vinho: “Gosto muito do desafio e o próprio fato de não ter padrão, sabe? Cada ano é um vinho. É preciso respeitar o que a natureza vem me trazendo e aceitar. Em uma safra posso conseguir uma uva com maturação maior, mas em outro pode chover muito e com isso podemos ter uma baixa maturação. A partir disso, que desenho eu vou ter do vinho?”, questiona. A procura por essa resposta me move, para mim é um prazer”, conta Borges. Para ele, os vinhos da Bella Quinta seguem o mesmo estilo dos naturais, mas não podem ser chamados assim por não serem produzidos com uvas orgânicas: “Ainda não tem regra, mas deveria ser chamado natural o vinho feito com uvas orgânicas”, explica, e também conta ainda que já está buscando a possibilidade de produzir com essas uvas, mas não pretende limitar seus vinhos a elas.
Borges pondera a respeito dos cuidados necessários para uma vinificação natural de qualidade. Análise de pH, de acidez, atenção à graduação alcoólica, compreensão do potencial da uva, cortes para balanço do pH e muitos outros detalhes são essenciais para um vinho de qualidade a partir da mínima intervenção: “Se eu tenho uma uva com muita acidez, mais verde, vou trabalhar vinhos mais leves, com menos contato com a casca. E se for com pH mais alto? É preciso tomar cuidado, porque sei que é um vinho propício a ter problemas de doença”, detalha o produtor.
Uma melhora nos vinhos naturais brasileiros foi percebida por Borges, que procura conhecer as novidades na Feira Naturebas e não deixou de lembrar da importância dela para os produtores: “no ano passado foi a primeira vez que provei mais vinhos brasileiros do que importados, pensando em beber tecnicamente. Os vinhos nacionais evoluíram muito, o que é maravilhoso, porque uma andorinha só não faz verão”, conclui. “Precisamos de muitos produtores fazendo coisas boas para o setor ficar conhecido e para crescermos”, complementa o vinicultor. Segundo a organização da Naturebas, na edição de 2024, que acontece nos dias 29 e 30 de junho, na Bienal do Ibirapuera, espera-se 3 mil visitantes e cerca de 140 expositores entre brasileiros e estrangeiros.
Uma boa oportunidade para conhecer o que se faz de bom no Brasil e no mundo.
Foto de topo: Feira Naturebas, por Lucas Tirem
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