Ciência, estudo, pesquisa, tentativa, erro, acerto, teste, degustação, descarte, prova, tudo isso repetido inúmeras vezes. Etapas importantes de um experimento técnico científico que pode trazer grandes mudanças para o mercado do vinho. “Quero buscar a Viticultura de Precisão ao extremo para tentar chegar à Enologia de Precisão, mas sem perder o lado criativo e inovador”, explica Gustavo Bertolini. “Quero unir arte e ciência”.
Bertolini é o nome por trás da Manus, fundada em 2020. Mas se a vinícola é recente, a história de Bertolini e dos Vinhedos da Quinta não é assim tão nova. “No ano 2000 adquirimos uma área de 89 hectares e implantamos 27 hectares de vinhedo, incialmente para comercializar uva para diversas vinícolas. Na região éramos apenas nós e Chandon, em uma das únicas áreas de vinhedos próprias que a marca francesa possuía na América do Sul”, “Em seguida outras empresas da Serra Gaúcha também começaram a buscar alternativas por aqui, como Lidio Carraro, Valduga, Aliança e Peterlongo, por exemplo”
A Vinhedos da Quinta, está localizada em Encruzilhada do Sul, na Serra do Sudeste, micro região do Rio Grande do Sul que fica mais ou menos no meio do caminho entre a Serra e a Campanha Gaúcha. Uma área escolhida a dedo por Idalêncio Francisco Angheben, referência no vinho brasileiro, alguém que sabia o que estava fazendo quando adquiriu o local. Tenha em mente também que a região é das mais propícias para o cultivo de uvas e por fim pense que o catalisador deste movimento é um apaixonado pelo que faz, e que tem na persistência e na busca pela excelência e inovação uma de suas principais características. “Para fazer grandes vinhos, primeiro temos que entender o que temos na mão”, prossegue Bertolini, este foi um dos motivos que o levou a iniciar a pesquisa.
O mapa de solo da Vinhedos da Quinta foi desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de Pelotas e com a Embrapa Clima Temperado. “Poucas empresas tem mapa de solo desenvolvido em profundidade. Nós sabíamos que o solo da região era formado por rocha granítica, mas na hora de fazer o mapa, constatamos que são pelo menos dezesseis diferentes, todos eles graníticos, mas completamente distintos um do outro: argissolo vermelho, argissolo vermelho amarelo, neosolo, argissolo amarelo. Uns franco-arenosos, uns franco-argilosos… são diversas misturas. Queremos e precisamos entender o que é cada um deles”.
Conhecer o solo para entender o que pode ser feito ali é uma necessidade, mas também um ativo valioso, quem compra uva dos Vinhedos da Quinta para produzir os seus rótulos, quer saber as características do solo para extrair o melhor da fruta; quem compra o vinho da Manus quer poder identificar as características de terroir de cada um dos rótulos.
Em 2021 Bertolini procurou a Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves, e juntos começaram um trabalho que nas palavras de Celito Guerra, agrônomo pesquisador da instituição, pode vir a ser modelo: “Se daqui 10 anos 10% de quem faz vinho fino no Brasil seguir essa lógica, o vinho brasileiro vai dar um segundo salto de qualidade”.
O trabalho começa com um estudo de manejo para saber qual é a carga de gema ideal para cada área, qual a cobertura de solo que deve ser utilizada – mais leguminosa, gramínea ou uma mistura – tudo buscando entender o quê resulta no vinho. Tarefas para os homens e para as máquinas, a tecnologia é uma forte aliada: drones, sensores, maquinário e claro, muita observação humana. A partir daí, entra a seleção das leveduras, 50 delas. “A ideia é fazer esta escolha para que comece a ser implantada assim que a sede da vinícola estiver pronta, queremos fazer as leveduras lá, em um campo neutro ainda não contaminado por aquelas vindas de outros lugares”, explica Bertolini. “Vamos usar as leveduras que conhecemos, cada uma com as suas particularidades, testando individualmente e em blends, para ver como resulta na taça. Com o avançar das pesquisas vamos poder decidir o que será ideal para cada variedade”.
Associar a Viticultura praticada no local à Enologia de Precisão é ambicioso, mas é possível: “Com conhecimento e valorizando o território, podemos alcançar esse sonho”, se entusiasma Bertolini.
O sonho começa a virar realidade quando os resultados começam a aparecer. Uma parte dos experimentos realizados desde o início desta pesquisa foi apresentada a um grupo de pesquisadores da Embrapa Uva e Vinho, que durante uma semana avaliaram microvinificações produzidas a partir de diferentes variedades cultivadas em Encruzilhada do Sul. A cada dia, foram degustadas 12 amostras com as mesmas uvas, colhidas em diferentes momentos, vinificadas de maneira clássica ou não e utilizando leveduras distintas. Para a esta bateria de avaliações foram apresentados vinhos produzidos a partir de Chardonnay e Assyrtiko, entre os brancos; Pinot Noir, Teroldego, Touriga Nacional, Feteasca Negra e Nebbiolo, entre os tintos.
No caso da Nebbiolo, os resultados foram surpreendentes: foi como se provássemos 12 diferentes vinhos. “Um vinho experimental é como um ser humano sem maquiagem e sem prótese, é o que a natureza permitiu que ele fosse”, sábias palavras ditas por Celito Guerra antes de explicar a metodologia do experimento. “Estas provas têm objetivo de apresentar vinhos que não tenham defeitos tecnológicos, para poder transparecer todas as características do produto e da forma como ele foi produzido”. Guerra antecipa também os testes futuros: “algumas amostras, claro, ficam guardadas em caves climatizadas, para que possamos analisar no devido tempo, acompanhando o projeto de pesquisa”.
Duas variáveis principais resumem esta fase de testes: as diferentes parcelas onde a uva está implantada e datas de colheita, espaçadas em um mês, em fevereiro e março de 2023. Importante salientar que as frutas vieram da mesma planta, colhida metade em cada data.
Os vinhos foram produzidos de forma diferente, amostras com leveduras comerciais, com leveduras selecionadas, vinificação clássica ou termovinificação, com amostras colhidas em pontos mais altos ou mais baixos da área – diferentes variáveis, tudo em busca de compreender melhor o solo e as suas possibilidades.
Em comum na avaliação dos experientes pesquisadores, além da adstringência da Nebbiolo, característica marcante da uva de origem italiana, está também a sugestão de investimento na variedade. Para Giuliano Pereira, responsável por Pesquisa e Desenvolvimento na Embrapa, pela qualidade e diversidade das amostras apresentadas, com o tempo Bertolini pode vir a ser um dos principais produtores de Nebbiolo no Brasil.
Agora as análises sensoriais e físico-químicas dos vinhos e das uvas serão cruzadas com os dados de tipo e umidade de solo, além de variáveis topo-climáticas, para poder se entender e estabelecer as relações entre tudo isso, criando um protocolo único de vinificação. “Desta forma, poderemos, quem sabe chegar a tão desejada Enologia de Precisão”, espera Guerra. “É conhecimento que nós precisamos, temos que saber mais da mancha de solo, da exposição solar, do vigor da planta. O tempo de maceração, por exemplo, tem de variar de acordo com o potencial enológico da uva. Precisamos entender como ela chega na colheita, com que potencial enológico, e não existe melhor nem pior: todas chegam com potencial. Se você fizer uma maceração longa pode ser vinho de guarda, outras que tem menos fenólicos por exemplo, menos açúcar e mais acidez, podem resultar em vinhos jovens”, explica Pereira.
“O projeto desenvolvido nos Vinhedos da Quinta é modelo”, afirma Guerra. “Não para ser copiado, mas para se ter um entendimento completo”, comemora. “A microbiologia em geral e as leveduras em particular são talvez as partes mais negligenciadas pelos enólogos, que olham para uva, imaginam as variáveis que vão utilizar mas nem pensam, de maneira geral, nas leveduras”, lamenta. “Mas hoje isso está mudando, já tem muita gente boa fazendo esse tipo de experimentação”.
Gustavo Bertolini na Manus é um deles: fiquemos de olho.