Por Irineu Guarnier *
Nasci em Cruz Alta e me criei entre lavouras de trigo e soja. Nunca imaginei que um dia a região onde vivi parte de minha infância e adolescência produziria vinhos. Para mim, desde sempre, a região vitivinícola brasileira por excelência era a Serra Gaúcha – que adotei como minha terra natal afetiva desde que comecei a me de dedicar à crônica do vinho, há quase duas décadas. Depois conheci outras regiões vitivinícolas gaúchas, como a Campanha e os Campos de Cima da Serra, além de muitas das demais áreas brasileiras produtoras de vinhos.
Mas foi de uns dez anos para cá, por influência do amigo vinhateiro James Martini Carl, que fui apresentado aos vinhos das regiões Noroeste e Missões do Rio Grande do Sul. Por meio do James, conheci produtores como o Carlos Boff, da Vinícola Don Carlos, de Santo Ângelo, e o Sérgio Malgarim, da Malgarim Vinhos, de São Borja. E, desde então, fiquei muito bem impressionado com os vinhos diferenciados que eles estavam fazendo – há 20 ou 30 anos, nos casos de Boff e Malgarim. Vinhos por vezes rústicos, geralmente intensos, mas que expressam, sem dúvida, o terroir agreste em que são elaborados, de invernos gélidos e verões tórridos, terra vermelha e coxilhas.
Tenho acompanhado de perto a evolução desses vinhos, que estão melhores a cada safra. Em um dia frio em agosto de 2024 tive a honra de conduzir, em Cruz Alta, a primeira degustação pública de vinhos da região, que adotou a marca de Terroir NoMi (contração de Noroeste/Missões) no início deste ano. Sempre digo que vinho de verdade precisa ter história, paisagem e autoria – e o Terroir NoMi tem tudo isso.
A Serra Gaúcha é reconhecida como o berço do vinho brasileiro, pois foi a partir da segunda metade do século XIX que os imigrantes de origem italiana começaram a produzir vinhos na região. Mas a história da vitivinicultura gaúcha começa pelo menos 250 anos antes dos colonos italianos aportarem no Sul, com a chegada dos padres jesuítas espanhóis à região hoje conhecida como os Sete Povos das Missões.
Ao padre jesuíta espanhol Roque González de Santa Cruz é atribuído o cultivo das primeiras vinhas na região, em 1619. As primeiras castas plantadas foram as espanholas Criolla e Criolla Chica, também chamadas de País e Mission. Com o fim das Missões Jesuíticas, a produção local de vinhos entrou em declínio e desapareceu. No entanto, a vocação vinícola da região nunca se extinguiu por completo, e renasce agora com o Terroir NoMi. Que já conta com oito vinícolas: Malgarim Vinhos, de São Borja, Don Carlos, de Santo Ângelo, Novos Caminhos Wine, de Ijuí, Weber, de Crissiumal, Fin, de Entre-Ijuís, Azienda Agrícola Bortolini, de Ijuí, Tertúlia, de Três de Maio, e Família WF, também de Ijuí.
A inovação é a marca dos novos vinhateiros. Seja nas variedades, nos blends ou na arte dos rótulos. Embora também cultivem cepas internacionais, como Cabernet Sauvignon, Merlot ou Chardonnay, eles investem em variedades ainda pouco conhecidas no Brasil, como a grega Xinomavro, a georgiana Saperavi, a montenegrina e sérvia Vranac ou as italianas Casavecchia e Nero D’Avola. A Vinícola Weber, por exemplo, testa 40 diferentes variedades. Os cortes também podem ser inusitados – como um vinho laranja da Don Carlos, elaborado com as uvas Palava, Chardonnay, Viognier e Pinot Bianco. Os rótulos do Terroir NoMi remetem quase sempre à longa tradição missioneira: nomes, como Sepé, da vinícola Malgarim, que alude ao índio Guarani Sepé Tiarajú, ou Aragano, da Don Carlos, sinônimo de algo arisco, como um cavalo indomável.
A terra vermelha, argilosa e fértil, das regiões Noroeste e Missões, ideal para o cultivo de grãos, não chega a ser um problema para os novos vitivinicultores, que estabelecem seus vinhedos justamente em áreas inadequadas para a soja ou o trigo. Áreas com bastante pedra e boa drenagem, como a videira gosta. Além disso, a forte amplitude térmica favorece a concentração de polifenóis nos vinhos.
Agora, a região já se organiza em uma associação e busca apoio da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, para a conquista de uma Indicação de Procedência (IP) junto ao Intitulado Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O próximo passo é o desenvolvimento do enoturismo. Projetos de hotéis, pousadas e restaurantes, que formarão um ‘corredor enogastronômico’, já estão em andamento – alguns, inclusive, em operação. A região ainda possui pontos turísticos que remetem a séculos de história, como as ruínas de São Miguel ou a Catedral de Santo Ângelo. E está bem servida de aeroportos, em Santo Ângelo, Passo Fundo e, futuramente, em São Borja, que recebem voos de São Paulo.
Tive o privilégio de ser escolhido “embaixador informal” do Terroir NoMi e levo muito a sério esta “missão”. Afinal, se puder fazer algo de bom pelo desenvolvimento cultural, econômico e social da região em que nasci, será uma grande honra para mim.
* Irineu Guarnier é escritor e jornalista especializado em agronegócio e vinhos
Imagens: topo Azienda Agrícola, de Ijuí, foto divulgação Márcio Bortolini. Perfil, foto Isadora Guarnier.
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