Seria Porto Alegre a capital brasileira das vinícolas urbanas?

Seria Porto Alegre a capital brasileira das vinícolas urbanas?

Porto Alegre é uma capital diversa: futebol, política e literatura convivem lado a lado e costumam ser assuntos de acalorados debates. Vermelho ou azul, direita ou esquerda, romance ou crônica. Na Gastronomia onde o churrasco quase que impera, a polêmica fica entre o mal passado e o ao ponto – e qual seria esse ponto, afinal?

E o que seria ideal para acompanhar cada uma dessas conversas, sempre animadas e muitas vezes intermináveis? Para muitos, claro, uma bela taça de vinho. E nos últimos anos a capital dos gaúchos vem se transformando, cada vez mais, na capital das vinícolas urbanas do Brasil.

Atualmente, sem contar as ‘secretas’, saindo de operação ou comandadas por vinhateiros low profile, há pelo menos cinco delas operando comercialmente – Ruiz Gastaldo Vinícola Urbana, Espumantes Adolfo Lona, Monte Vinhos de Autor, Cantina Mincarone e Cave Poseidon – vendendo vinhos, recebendo visitantes e oferecendo opções de enoturismo, apresentando uma faceta da cidade que poucas pessoas conhecem. São empresas localizadas em diferentes bairros, que produzem vinhos distintos entre si, vinícolas lideradas por apaixonados pelo vinho, com mais ou menos experiência na área, com muita – ou nenhuma – formação acadêmica, alguns deles, inclusive frequentando cursos de graduação em enologia. Em comum a todos o amor ao vinho e o prazer de trabalhar com pessoas. Porque conviver com pessoas, sabemos, é uma das coisas mais legais do mundo do vinho. E foi com algumas destas pessoas especiais que fazem vinho em Porto Alegre que conversamos para contar esta história.

Nosso trajeto começou pelo Chácara das Pedras, na Zona Norte de Porto Alegre, um dos bairros mais tradicionais da cidade. É lá, numa bela casa de esquina, que vive a família Ruiz Gastaldo – os filhos Luísa, Matheus e João Pedro, junto com os pais Camila e Eduardo, engenheiro apaixonado por vinho que nos recebeu em uma tarde quente de segunda-feira no final do verão.

Ruiz Gastaldo Vinícola Urbana

“O conceito de vinícolas urbanas que conhecemos hoje tem origem na Califórnia, em Berkeley”, explica Eduardo Gastaldo. “Foi lá, na década de 80, que foi criada a Edmunds St John, talvez a primeira vinícola urbana que se tem notícia depois do período da Lei Seca, na década de 20, quando os americanos faziam vinho em casa em cidades como Nova Iorque e Los Angeles”, completa.

E podemos dizer que aqui no Brasil Gastaldo foi um pioneiro. Em 2017 subiu a Serra para buscar uvas de sua primeira safra, tintas que resultaram no Cabernet Sauvignon João Pedro, que começou a fermentar simultaneamente ao nascimento de seu terceiro filho, homenageado com o rótulo que leva seu nome. Em sete anos o engenheiro Gastaldo transformou a garagem da casa – localizada em um bairro residencial de Porto Alegre, a cerca de 10 minutos a pé de um dos maiores shoppings do Rio Grande do Sul – em uma verdadeira vinícola: tanques, barricas, adega, receptivo.

A mudança na estrutura da residência da família também envolve os moradores. Camila auxilia Eduardo no receptivo e não raro Luísa também está por ali, ajudando ou desenhando. Mas todos fazem parte da história da Ruiz Gastaldo, o nome da vinícola é o nome da família: Ruiz, por parte de Camila, Gastaldo de Eduardo. Entre os rótulos, homenagem aos filhos Luísa, Matheus e João Pedro, aos sobrinhos Marina, Arthur e à cidade de Porto Alegre, lembrada de diversas formas em diferentes vinhos, sempre a partir de obras de arte, seja em fotografias ou ilustrações de artistas locais.

Espumantes Adolfo Lona

Adolfo Lona é um nome que se confunde com a história do vinho em nosso país. O argentino de nascimento que já está no Brasil há mais de 50 anos é referência no tema. Com diversos livros escritos e um dos pioneiros nos cursos sobre vinho e serviço do vinho, foi na pandemia que decidiu diminuir o ritmo e abrir as portas da sua vinícola na capital. Até então quase todo seu processo produtivo era realizado em Garibaldi, na Serra Gaúcha, mesma região onde compra boa parte das uvas que resultam em seus rótulos. Incialmente se instalou no bairro Rio Branco, em uma região bem central, mas logo o imóvel ficou pequeno e Lona optou pela mudança: o novo espaço, no bairro Floresta, está com a obra em fase final. Alguns tanques de inox que passarão a ser utilizados para a produção dos vinhos tranquilos aguardam para entrar em operação e a guarda das garrafas já está organizada, assim como a estrutura de finalização dos espumantes, o carro chefe da vinícola, junto com o Baron, rótulo que faz brilhar os olhos do enólogo ao contar sua história.

“O único patrimônio que um pequeno tem é o seu valor da marca”, sentencia Lona. E a sua está muito próxima do Baron de Lantier, rótulo lançado por ele na década de 80 quando estava a frente da De Lantier e que segue no imaginário dos apaixonados por vinhos de diferentes gerações. Também pudera: o vinho desenhado por Lona que passou a frequentar boa parte dos restaurantes até o início dos anos 2000 foi concebido a partir de uma série de inovações para a época, tanques de aço inox, barricas de carvalho francês, mudas importadas da França e claro, a mão do enólogo.

Quarenta anos depois, em um novo momento, Adolfo Lona volta com um novo Baron e apresenta um rótulo que, segundo ele, traz uma das coisas que mais aponta a qualidade de um enólogo: o corte.

O Baron Assemblage Adolfo Lona 2020 traz Cabernet Sauvignon, Merlot e Tannat, num blend de uvas cultivadas no terroir da Campanha Gaúcha. Uma volta no tempo para quem viveu a época do Baron de Lantier, agora revigorado com o conhecimento acumulado por Lona nessa trajetória. Um corte preciso que lembra o Baron dos anos 80 e faz com que os sortudos que ainda tenham alguma garrafa daquela época em casa se surpreendam ao degustar, em alguns casos quase 40 anos depois.

Monte Vinhos de Autor e Cantina Mincarone

 As duas vinícolas não ficam no mesmo local, mas veja bem, Porto Alegre não é tão pequena assim. A cidade de cerca de 1,3 milhão de habitantes, de acordo com o censo de 2022, tem uma área de quase 500 km2, divididos em 81 bairros oficiais. Todas as vinícolas que apresentamos nesta reportagem estão em cinco diferentes regiões. A Monte e a Mincarone, por exemplo, estão distantes quase 70 quilômetros entre si, mais ou menos uma hora de carro: para poder contemplar a todos, nos ‘escalamos’ para conhecer a sede da Monte e juntamos Paulo Backes e Mário Saavedra, da Monte, a Ana Maria e Caio, da Cantina Mincarone, em um fim de tarde regado a vinhos e risadas, comuns em encontros de amigos.

Em comum aos quatro, além da amizade, claro, o amor por fazer vinho. E mais do que isso, a busca pelo natural, pelo autoral, pelo sustentável. Podemos dizer sem errar muito, quem sabe, que as duas duplas, têm trabalhos muito similares. Ou não.

Mas isso, claro, é uma questão de opinião.

O engenheiro agrônomo Paulo e o publicitário Mário seguem a filosofia que preza pelos vinhos ancestrais e naturais, fermentados com as leveduras originais dos vinhedos de origem, algo que, sabemos, não é compreendido e nem apreciado por todos.

Ana Maria e Caio, mãe e filho, ela jornalista de formação, com estudo nas áreas de permacultura, astrologia e afins, ele fotógrafo, também buscam o natural, e aguardam a possibilidade de trabalhar com as uvas que cultivam em sua propriedade, quase no limite com a cidade de Viamão, na região metropolitana. Das cinco vinícolas apresentadas aqui, a Mincarone é a única que tem vinhedo próprio.

A conversa com quem produz vinhos naturais geralmente transita mais pela filosofia do que pela prática, os porquês das escolhas e o objetivo maior de cada rótulo. São diferentes métodos de vinificação e experimentação, uvas não tão utilizadas comumente – como a Herbemont ou a Moscato Bailey, que Backes e Saavedra elegeram para o corte do rótulo Ipê.

E uma das coisas que as vinícolas urbanas de Porto Alegre têm, com certeza, é diversidade, não só apenas em métodos e práticas, mas também em filosofia: conhecer cada uma delas é uma bela – e saborosa – maneira de identificar um pouco mais as possibilidades presentes em uma garrafa de vinho.

Cave Poseidon

Na Vila Assunção, quase na beira do Guaíba – um lago, um rio ou um corpo hídrico, como classifica a wikipédia – fica a Cave Poseidon, microvinícola urbana que nasceu a partir da vontade do dentista Carlo de Leo de começar a produzir seus próprios vinhos. Vontade e incentivo, na verdade, porque o hoje vinhateiro conta que um paciente que se tornou amigo, o fez perceber que seria possível fazer vinho em casa. “Não pensei que seria viável”, argumenta, “para mim, uma vinícola sempre esteve associada a vinhedo e a uma grande estrutura, mas foi uma provocação boa, comecei a ler, estudar por conta própria, descobri como fazer e fiz”, diz ele. Hoje Carlo segue estudando, mas não de forma solitária, matriculado no curso à distância da Faculdade Católica Paulista, passa a conhecer a teoria do que muitas vezes já vivenciou na prática.

Oficialmente a Poseidon nasceu em 2019, e teve sua primeira safra vinificada em 2021, produzindo vinhos com um perfil do dia-a-dia, de acordo com o vinhateiro, “saudável, agradável e fácil de beber”. As uvas que resultam em seus vinhos são selecionadas a partir de parceiros localizados em diversas regiões do estado como Bagé, Encruzilhada do Sul e Pinheiro Machado, agricultores que, segundo Carlo, tenham uma filosofia parecida com a sua.

Entre os vinhos produzidos na Poseidon espumantes vinificados pelo método ancestral – os petnats – e tranquilos varietais de Cabernet Franc e Sauvignon, além de um corte com as duas variedades e Merlot, alguns deles com passagem por barricas.

Para breve, Carlo promete um programa diferenciado: degustações a bordo, apreciando os vinhos e a paisagem da capital. O barco já está reservado e os vinhos, rotulados, é só uma questão de tempo e logística.

Já garantimos nosso lugar na fila de espera, como certeza será uma bela maneira de conhecer – e degustar –Porto Alegre.

 

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